Wednesday, July 26, 2006

Capítulo II.

Alguns minutos depois, tomamos um improvisado café da manhã, desmontamos acampamento e fizemos a trilha de volta a Lençóis onde iríamos pegar um ônibus pra Feira de Santana e de lá, um outro até Salvador. Apesar de não simpatizar com a ética e a estética artística soteropolitanas, alguma coisa me prende àquele lugar. Pode ser as inconscientes recordações da infância, o surpreendente cheiro de salitre e as beldades na areia e o mar. Não ha rio nem cachoeira que se compare a tua beleza. Iemanjá, Poseidon, Netuno, Ogum Marinho, me esperem que eu chego com saudades desse poluído odor de Jaguaribe, Ribeira, Itapoá, Porto da Barra, Rio Vermelho, Jardim de Alá. Acredito que jamais conseguiria permanecer muito tempo longe de Salvador. Aceito e me encaixo perfeitamente no rótulo de verme de Brotas, bairro onde aprendi a amar, mentir e sentir como se pudesse absorver tudo que me cercava como se fosse a última vez. Lembro que numa certa ocasião, quando caminhava pelas ruas do Matatú de Brotas, me veio a nítida sensação, aos onze anos, que iria morrer um dia e, já que iria morrer, será que tinha que fazer o que sempre fiz? E todas as pessoas que sabem disso não se desesperam? Já que é pra morrer, pra que porra nascemos? Pensamentos de criança que nunca me abandonaram. Foi nesse período que comecei a me sentir um estrangeiro, não como o de Camus. Um estrangeiro que ama uma cidade que acredita só ele poder enxergar. Sempre fui presunçoso.
A viagem de volta á Feira de Santana foi angustiante. A estrada era péssima e as pessoas contavam suas histórias sobre o mesmo assunto: que haviam sido assaltadas nesse mesmo trecho. Os assaltantes se aproveitavam da baixa velocidade dos ônibus por causa do estado da pista e deixavam as pessoas somente com a roupa do corpo. Luana começou a ficar nervosa e eu tentei acalma-la:
_ Não vai acontecer nada. Se acontecer, temos pouquíssimo dinheiro e geralmente, quando antecipamos algo que tememos, esse algo jamais acontece. Vai por mim.
_Ok, se um cara aponta uma arma pra minha testa e diz que vai atirar e, se antes que ele aperte o gatilho, eu antecipar o fato, temendo e imaginando a bala transpassando meu cérebro, isso não irá ocorrer. Odeio superstições imbecis. Era melhor você ter ficado na sua.
_Ta bom, então fique aí sofrendo que eu vou dormir, são sete da noite e só me resta tirar um cochilo.
_Não sei como consegue dormir com esse ônibus balançando pra lá e pra cá.
_Técnica faquir.
_Me abrace que eu tô morrendo de frio. O ar condicionado do busú ta muito forte-Nesses momentos sua feição de menina contrastava com a arrogância que muitas vezes aflorava em sua personalidade. O título de Doutora em Teoria da Literatura pela UNICAMP havia enaltecido sua pompa e ela perdia aquela simplicidade de guria do interior que sempre me encantou. Será que estou com dor de cotovelo por ser um professorzinho sem título pensando que é escritor?
Pela janela do ônibus deflagrava-se um céu onde a via-láctea parecia cocaína batida em mesa de mármore preto e eu tentava enganar minha fome bebendo água mineral enquanto chegava o próximo ponto de apoio.
Uma editora se interessou por alguns de meus contos e perguntaram se eu conseguiria escrever um romance denso e ao mesmo tempo empolgante sem cair no tédio dos romances de agora. Eu aceitei. Os idiotas só não sabiam é que eu iria pegar alguns contos, criar situações de relação entre eles, substituir os nomes de alguns personagens dividindo os contos em capítulos e encadeando as histórias. Sempre quis escrever um romance de capítulos bem curtos como os da fase realista de Machado de Assis, mas com o prazo que me deram, isso ficará pra uma outra ocasião.
Gosto mais de meus poemas que da prosa. As pessoas acham o contrário e acredito que seja pela falta de hábito com a linguagem poética. Parece que a poesia está com os dias contados. Pelo menos os poetas, que se autoproclamam entendedores de poesia, gostam. Pena que meus poemas não tenham poetas como público alvo. Às vazes penso que não tenho público alvo e esse público seria constituído de muitas réplicas de minha pessoa. No fundo, cada escritor escreve pra si mesmo. Espero que eu goste do que escrevo pra mim.
Quando chegar no apartamento vou pegar uns cascos e comprar umas cervejas no trailer da rua de baixo, colocar The Heart of Saturday Night de Tom Waits enquanto os carros deslizam como hemoglobina na Dom. João VI em artéria escancarada. Sorte que o ônibus parou num ponto de apoio e pude comer uma esfírra de carne detestável pelo triplo do preço. Lua preferiu ficar dormindo na poltrona 47, toda coberta e com uma touca na cabeça. Quando penso que quase enlouqueci por essa mulher e vendo-a adormecida com essa cara de ninfa celestial, me conformo com o fim que a tudo abraça e me acalmo. Em casa é só o carpe diem absoluto embalado por Tom Waits ou The Walkabouts. Como um assassino premeditando o crime perfeito, imagino a trilha sonora, as carícias, de como tenho que prender o gozo e variar e ser eternamente o fodão e príncipe perpétuo e anjo-dono e pai querido.
Entro no ônibus me dirigindo a metrópole baiana, ela continua dormindo e me pergunto: Será que toda vez tenho que faze-la gozar? Tem que ser sempre inesquecível? Ela finge pra mim? É claro, elas sempre fingem, afinal nós homens é que jamais podemos fingir. Como dizia o antigo porteiro de um prédio de um brother no Engenho Velho da Federação: “O brinquedo delas é de abrir e o nosso é de armar, é mais difícil”.
Tenho que parar de ter ciúmes e esses sentimentos medievais de posse. Se um dia o cara chegar, se é que nunca chegou, e “montar em minha bicicleta”, não posso me desesperar. Já passei por isso numa outra situação, só que sou louco por essa criatura. Dizem que tem caras que sentem tesão ao verem a esposa sendo enrabada por outro maluco. Sou meio antiquado e egoísta e a industria pornô ainda não mudou minha concepção de relacionamento. Será que é pelo fato de o título acadêmico parecer vir acompanhado de uma espécie de título de nobreza? Ela dá aula na universidade, dorme dois dias em Feira de Santana e é linda de matar. Pensando nas mulheres casadas que já conquistei, inclusive a própria, começo a ter uma espécie de arrependimento, mas história de adultério não seria o foco principal dessa narrativa. Existe uma coisa pior que a mentira e o desprezo: a inutilidade. Preciso escrever, ter disciplina, Luana tem razão. È só sentar á frente do computador e as imagens começarão a aparecer. Computador pra mim é somente uma maquina de datilografar com mais recursos. Ela nunca mais leu o que ando escrevendo, nem ela nem ninguém.
Lua me acordou quando já chegava na rodoviária de Salvador.
_Vamos comer aonde?
_Tava pensando em pegar umas cervejas e fazer algo em casa mesmo.
_Uma da manhã e estamos viajando há quinze dias. Não tem nada em casa. Vamos pensar num lugar pra jantar Rafael, tô morrendo de fome!
_Vamos naquele restaurante chinês na Cidade Baixa.
_Boa idéia.
Tomamos um táxi na rodoviária e Luana foi logo chiando:
_Bandeira dois! Faz um menos aí meu tio?
O taxista, um senhor calvo, magro, moreno e grisalho, sorri e cedeu aos caprichos da guria. Aquela sovinice de Luana me estressava. Tinha pena de gastar com tudo, menos com roupas. Comprava roupas de grifes caríssimas e falava num mundo mais justo. Ninguém é perfeito.
Paramos, ela pagou e fomos sentar na última mesa perto duma imensa gravura dessas paisagens orientais repletas de vulcões e árvores de copa vermelha. Um descendente de chinês creio, veio nos atender e antes que ele trouxesse o cardápio, Lua foi logo interpelando:
_Uma jarra de saquê e um rolinho de queijo.
_E o senhor?-Ele falava fazendo uma espécie de reverencia típica dos orientais. Detesto essas palhaçadas.
_ Eu vou querer um rolinho de carne com repolho e meu saquê é quente.
_E o meu gelado.
_E para jantar?- O sacana perguntava fazendo aquela porra de reverencia.
_Eu quero família feliz.
_É mesmo gatinha! Uma família feliz borbulhando no tacho meu brother!
_É pra já.- Nem precisa dizer que o garçom fez a reverencia novamente antes de levar o pedido. Família Feliz é um prato realmente completo com macarrão, camarão, carne de boi e frango desfiados, carne de porco em cubos, ovos de codorna, cenoura, acelga chinesa em fatias finíssimas, castanha e um delicioso molho a base de soja e coberto por um pouco de molho agridoce. Adoro essa comida altamente protéica. Nunca fui muito fã de comida de restaurante japonês, sempre me amarrei em chinesa, tailandesa. Queria experimentar algumas mulheres típicas de determinados países, assim como a comida. Que besteira! Mas nem só de conflitos de um gênio angustiado vive a literatura, è preciso amor, tesão, escuridão e luz como um plasma em simbiose com essa droga de existência.
Chamamos um táxi e fomos pra casa. Na porta do prédio se encontrava meu velho amigo Tom Raiva.
_E aí grande figura, que é que cê ta fazendo aqui essa hora?
Ele chegou mais perto pro porteiro do prédio não ouvir e falou:
_Me deixe entrar que os homens da lei tão atrás de mim. Fiz a maior merda essa tarde. Deixe eu dormir aqui essa noite pra escapar do flagrante.
_E aí Raiva como é que ta?
_Beleza Lua. Beleza não, mais ou menos.
_Pra variar.
Tom se voltou pra mim e perguntou:
_Será que ela não vai pirar se eu me jogar aqui essa noite?
_Com certeza vai, mas fazer o quê? E aí, que caralho você fez dessa vez?
_Lá em cima eu te conto
_Você ta perto de fazer trinta anos meu velho.
_Só tenho vinte e sete.
_Hendrix morreu com essa idade. Gosto até do que você escreve, mas pra ser um Jimi Hendrix da literatura você vai ter que evoluir ainda mais.
_Sabe aquele centro?
_Que centro?
_O centro do seu cu? Vá tomar no centro do seu cu!
Com essas palavras lisonjeiras de nosso herói, será melhor por fim a esse capítulo.

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