Thursday, December 06, 2007

SEGUNDA PARTE.

Capítulo I.

_E aí ilustre criatura! Esqueceu que o senhor tem que se arrumar pra dar aula enquanto eu aproveito a greve na universidade?
_Já tô indo.
_Ta escrevendo o quê?
_De quando conheci a mulher que me atormenta, sobre toda essa maluquice que nos cerca, e Tom Raiva e seu amor de Dirceu por sua Marília pós-moderna e esse tipo de coisa tão comum a todos nós e ninguém bota no papel.
_Só você, o grande artista que abdica das superficialidades de uma vida vazia pra se entregar a sua obra.
_Também te amo.
_Me deixe ler...
_Se sinta á vontade. Vai querer ouvir o quê enquanto examina a gênese do meu romance?
_Aquelas baladas de John Lennon. Gosto mais dele solo do que dos próprios Beatles.
_Ás vezes penso a mesma coisa, mas sinto falta do baixo de Paul como nos discos da segunda fase da banda.
_Adoro conversar contigo sobre música. Já te disse que sou eternamente grata a você por toda a riqueza musical de nossa vida?
_Por que a senhora ta assim tão meiga?
_Deve ser saudades. Quando fico longe de você sinto um amor que até você iria se assustar. Quero que se sinta amado pra não olhar pras burguesinhas do cursinho.
_Eu posso até olhar, mas aí eu comparo e esqueço.
_Sempre espertinho. Me beija!
_Vem você – E ela me encarou com uma nabokovica expressão de ninfeta, de moleca traquina deitada no sofá e eu acabei indo para o beijo. Sempre cedia.
Muitas vezes me sentia uma mulherzinha perto dela. Tinha certeza do seu domínio sobre mim, contava os minutos pra ela voltar como uma espécie de Penélope ou francesinha enamorada da Primeira Grande Guerra que esperava a volta do amado que sangrava até a morte no front. Fico pensando o que essa criatura viu em mim. Ela poderia ter qualquer homem que quisesse e escolheu Rafael de Oliveira. Será que ela realmente acredita no que escrevo? Sempre que penso essas coisas fico imaginando o dia no qual Lua me dará um pé no rabo e me lembrarei de agora sem saber se terei coragem suficiente pra me reerguer depois do alcoolismo praticamente certo após o abandono. Ela ta tão carinhosa que penso em não trabalhar, mas lembro que não ganho nada escrevendo e que a dona do cursinho ta de marcação a quadra inteira comigo nesse baba.
Beijei-a como deveria ser a nítida separação entre a doçura daqueles lábios e a amargura de ter que trabalhar. Coloquei John Lennon pra tocar, mudei a camisa sem tomar banho e fechei o baseadinho que facilitaria o meu convívio social me afastando das pessoas em direção ás profundezas de mim.
Mas hoje é um dia bom. Vou passar ás duas aulas declamando versos e comentando Augusto dos Anjos no cursinho. Poesia sem igual pra seres praticamente iguais. Pequenos imbecis imberbes que acreditam em lorotas mortas, em idéias mais falidas que seus próprios instintos. Meus alunos sonham com todo o glamour de dirigir o carro da propaganda com uma loira parecida com a do comercial e que o caminho dessa felicidade começa ali no cursinho que os levará a promissora carreira e a toda sorte de luxo e tecnológica quinquilharia que nos transforma em escravos daquilo que criamos: títeres de nossas invenções.
E as garotas querem mais que aquele cara que dirige o carro e sorri pra loira do mesmo comercial. Por isso elas procuram, até mesmo nas meninas e vem e vão como verdadeiros anjos do dia do Juízo Final, asfixiando as almas dos homens numa maquiavélica vingança contra toda a sorte de infortúnios e privações sofridas por suas ancestrais na masculina história desse planeta. E tem também os veados separados em duas categorias: a dos que dão o rabo e falam como meninas e a dos que dão a porra do rabo e falam como meninos. Os que se vestem como meninas não freqüentavam o cursinho, ainda era Salvador.
Mais eram praticamente iguais. As meninas se dividiam em patricinhas que se vestiam idênticas e hippies-chics de playground que se vestiam também iguais em seu estilo. As calças apertadas e saias e shortinhos justíssimos das patys era coisa bonita de se ver, enquanto a transparência e a delicadeza das saias longas das maluquinhas eram melhores de tocar.
É foda, quando começa a bater onda fico devaneando demais. Tenho que colocar a calça, calçar sapatos e lembrar do aquecimento global e da emissão dos gases poluentes enquanto infinitos carros consomem a velha D. João VI. Jogando a bagana no vaso sanitário, imagino a noticia de ontem no telejornal enquanto lanchava na padaria. Eles diziam que uma proposta para reduzir o aquecimento global seria colocar espelhos em órbita da terra para refletir os raios que sempre nos deram a vida e a morte. Será que o sol precisa de alguma vaidade enquanto nos governa? Com todos esses espelhos ainda veríamos a lua? O grande processo civilizatório não pode parar, até que tudo seja cinza; céus, mares, árvores e todos os nossos corações. Eu realmente gostaria de saber se a porra do poder é uma droga tão viciante assim. Não, não quero saber nada disso. Deixe-me viver os meus dias como uma espécie de discípulo de Alberto Caeiro que anda de automóvel pra se distrair da ficção.


Capítulo II.

Ontem cheguei atrasado e já tô quase atrasado hoje. O busu parece que não anda, uma mulher estende o braço pra perguntar se passa na Vasco da Gama, um senhor de idade desce lentamente e parece que todos os sinais se fechavam quando o ônibus se aproxima. Acho que hoje peço demissão e ela vai aceitar. A desgraçada pode achar alguém que venda literatura mais barato, mas os alunos me adoram. Nunca tive grandes problemas com alunos ao longo de minha carreira como professor. Talvez todas as horas dedicadas á analise da alma do homo sapiens durante minha vida tenham ajudado a enxergar previsibilidade nas ações consideradas mais inusitadas. Eu vejo a vida como um arquétipo, os comportamentos como caricaturas; tudo cristalizado, solidificado em algo individualmente universal qual toda gama de desejos que nos cerca. Queria ser menos humano. Desprovido de ciúmes, saudades, empáfia, medo, certeza, dúvida e angustias. De que adianta me questionar sobre o ciúme que senti ao ver Luana sair vestida de forma provocante se a porra do sentimento egoísta já corroeu minhas entranhas? Pelo menos posso esconder a cobiça e fingir que leio um livro. Será que o fato de sermos racionais consegue fazer com que soterremos todas as sensações mais primarias de forma satisfatória? Claro que não seu estúpido, senão os bares, igrejas e sanatórios não estariam sempre apinhados de gente assim.
Pedi ponto e pra minha sorte, o professor de química ainda tava na sala. Passei na barraquinha da frente pra comprar pastilhas desbarrunfadoras e, quando entrei, além da megera não estar no curso, o professor de química que era novato e queria mostrar serviço, perguntou se podia usar quinze minutos de minha aula e, é claro, consenti.
Pela primeira vez podia sentar, beber água, conversar com a secretária e pensar se declamaria Versos Íntimos ou Solilóquio de um Visionário pra ambientar aquelas mentes com a poética de dos Anjos. Por mais que gostasse dessa parte do meu trabalho, detestava ter que trabalhar. Cumprir horário sempre foi um sacrilégio pra mim, mesmo sabendo que milhares de trabalhadores saem de casa de madrugada e retornam no meio da noite pra comer, procriar e desabar. Já perdi alguns empregos devido a esse lance de horário. Entre ensinar Língua Inglesa, Gramática da Língua Portuguesa ou Literatura Brasileira, é melhor ficar com a última opção apesar da merreca que me pagam. Devia fazer um mestrado pra ensinar nas faculdades, mas quando penso em ter que estudar novamente algo preestabelecido e enquadrar minha escrita dentro dum padrão científico começo a desistir rapidamente, sou meio preguiçoso e presunçoso. Prefiro escrever pra que escrevam sobre mim ao invés de ter que me esforçar pra citar alguém que legitime o que escrevo. Acho que consigo pensar sem muletas.
Será que Lua ta lendo meus escritos? Ela ainda ta ouvindo Lennon? Será que ta pensando em mim? Quanto tempo mais vou poder devanear enquanto não começo a dar aula?
Meu tempo acabou. O professor saiu da sala se desculpando pelo horário e os alunos saíram pra beber água, fumar um cigarro e esticar as pernas. No fundo eles também não queriam estar ali. Ou será que queriam? Já se questionaram a respeito? É bom deixar quieto.

Capítulo III.


Praticamente na porta do cursinho, só que do outro lado da rua, encontrei Flávio, o grande brother de Tom Raiva e meu amigo também. Esse personagem tem uma importância brutal na vida de Tom. Seu Flávio, uma criatura que fazia bacharelado em biologia, branco, loiro, forte, de olhos verdes, fanático por Bob Marley, Jiu-Jitsu e Basketball, conhecedor e cultivador de diversas espécies de cannabis para uso pessoal, megalomaníaco ao extremo e profundamente apegado a estética das mulheres malhadas com o rabo imenso, deu uma volta certa vez com o velho Raiva. Nessa noite eles saíram com duas belas mulheres de Brasília que visitavam Salvador e, depois da bebedeira, quando todos estavam embriagados no mesmo quarto de Motel, uma das garotas, ao comparar o magérrimo corpo de Tom com o físico hipertrofiado de Flávio, deixou no ar a seguinte expressão: diferença básica!
Foi a partir desse dia que o cara se sentiu feio, pequeno, ínfimo e começou a malhar, nadar, tomar suplementos e anabolizantes, treinar Jiu-Jitsu e abdicar dos efeitos anestésicos do álcool e da cocaína em busca de uma vida mais saudável, mas continuava fumando maconha a toda hora. Aí fudeu tudo! A cada dia ele vinha com aquela conversinha de que era o retorno do homem completo; versado na arte, no amor, na ciência e na guerra. Seus amigos músicos, pintores e poetas diziam que ele tinha ficado bufado, que tinha aderido ao sistema e essas ondas. Mas, mesmo assim, os escritos dele eram cada vez melhores e ele dizia o seguinte: “Meu velho, as garotas são como poesia, possuem conteúdo e forma. Com a melhoria da minha forma física comecei a buscar poemas com maior perfeição estética, linearidade nas curvas, ritmos frenéticos e silhuetas melindrosas. Melhoraram as musas, ergueram-se os poemas.”
Quando encontrei Flávio dava pra notar que o cara tava alucinado.
_E aí seu Flávio, que cara é essa?
_Tomei um doce na casa de meu primo e tô aqui derretendo – A expressão do cara era um misto de alienante felicidade, dúvida e susto.
_Vai fazer o quê agora?
_Vou pra república.
_Que república?
_República do reggae – O cara não perdia nenhum show de reggae em Salvador.
_Ta afim de ir Rafa? Ainda tem metade de um AC aqui.
_Não vou não, Lua ta em casa me esperando.
_Largue essa vida e essa fobia do ser humano. Você ta virando um sociopata.
_Pare com isso.
_Valeu man, vou pegar esse busu.
_Valeu – nos cumprimentamos com esse cumprimento chocando as mãos fechadas uma contra a outra, ele pediu ponto, subiu no ônibus e eu notei que ainda tava viajando e pensei nas coisas que ele me disse. Será que tô virando um sociopata mesmo? Talvez não seja hora de voltar a vida normal? Eu já tive vida normal? O que é normal ou anormal?
Agora tenho que dar aula no curso de Inglês na Graça. O dono do curso é um americano gente boa que não pega no meu pé e ainda me paga o dobro do que a dona do pré-vestibular pagava, só que eu achava um saco ter que ensinar inglês, mas lembrava dos intelectuais condenados a trabalhos forçados após a revolução socialista chinesa e repetia pra mim mesmo que essas duas horas passariam como água pela garganta.
Ajudem fieis leitores, divulguem meus escritos, vendam, peçam o número da minha conta para doações em dinheiro, mas façam qualquer coisa pra que eu possa viver de literatura. Meu Deus! Estou pedindo esmola em meu próprio romance! Bukowski teve que trabalhar treze anos nos correios para que enfim, vocês o encontrassem, Fernando Pessoa a vida inteira como mero funcionário de escritório, Genet precisou do aval de Sartre prestes a ser condenado. Será que vai ser necessário estourar os miolos pra que meus escritos tenham algum valor de mercado? Será que tenho que falar sobre legiões de seres extraterrenos e códigos secretos da NASA?
Vale dos Rios/Stiep R-3. Esse é meu Ônibus. Ainda tenho cerca de vinte minutos em liberdade antes do good evening na entrada da sala de aula.

Capítulo IV.

Em mais uma odisséia imaginária particular num ônibus qualquer de Salvador, metamorfoseado no super vendedor de língua inglesa, vestido de camiseta gola pólo azul-claro, calça jeans-escuro, e um tênis qualquer de alguma grife certamente americana, com minha pasta de couro preto contendo módulos, cds, livros e provas, lia o caderno de anotações do meu bom e velho amigo Tom Raiva. Uma espécie de diário escrito à mão, melhor descrevendo, rabiscado à mão. Peguei o caderno e disse ao figura que ia digitar o que conseguisse entender. Aí vão algumas reflexões do cara enquanto a maldita hora do Good Evening não se aproxima:

13 de Junho – Essa data tem um significado especial para mim além de ser dia de Santo Antonio, padroeiro de Alagoinhas. Eu estava lá na festa quando tinha quinze anos. Música, quermesse, parque de diversões, comida junina e, nas proximidades da concentração do time da Catuense, Gracinha, uma de minhas primeiras namoradas, chupou minha pica pela primeira vez. Eu gostei demais daquilo. Gostei tanto que acabei enchendo a boca da guria de esperma e ela bebeu, fez uma cara de tristeza, levantou e depois vomitou uma mistura de sêmen, coquetel de frutas e maçã do amor. Observei alguma poesia naquele mosaico de cores complementares.

23 e 24 de Junho – Véspera e dia de São João. Essa sempre foi a melhor festa pra mim. Desde quando era um guri de playground e ia passar a data em Alagoinhas na casa de Minha avó materna. Os fogos, as comida e os trajes típicos, a melancolia do forró e do baião, os licores de sabores variados sem esquecer do jenipapo, dançar colado, beijar colado. Ah...! Se fosse possível morrer colado. Que saudades do meu velho forró pé de serra sem instrumentos eletrificados e vadias com roupas de strippers. Que saudades de meu primeiro grande amor consumido por devaneios babilônicos. Que falta sinto do São João em Serra do Aporá meu amor, dos meus ciúmes juvenis e de toda a doçura que havia em teu olhar. Não o que você se tornou após esses dez anos, mas aquela menina de dezenove que me fez decolar para um mundo de incertezas sempre será amada por mim. Será que ainda seria a mais bela do universo? Meu Deus porque não esquecemos. Cristo! Abra algum portal pra essa dimensão aparentemente perdida pelo tempo, eu preciso voltar e sentir, com todos os meus órgãos do sentido, a fatalidade daquela noite lá em casa em 96 quando você me acordou vestida com minha blusa e somente com ela. Ainda gosto do São João. Pelo menos posso beber de graça, fumar bagulho na rua em meio a fumaça das fogueiras e, quem sabe, algum licor de cajá dum próximo São João em Cachoeira, me faça esquecer os memoráveis Sãos Joãos de outrora.

4 de Julho – Lembro da independência do Tio Sam e da minha fase Marxista e o movimento estudantil e as discussões rumo a lugares comuns e as bocetinhas. Sempre havia alguma por trás de cada passeata no sol insuportável.

6 de Julho – Meu aniversário. Tem tempo que parei de comemorar essa data. Nunca entendi porque as pessoas chegam a ponto de congratular uma outra por caminhar mais perto da sepultura. Desde o fim da infância e dos presentes, essa data passou a soar falsa e superficial. Geralmente nada de interessante me acontecia nesse dia e comecei a esconder a data e a me esconder nessa hora.

É bem possível que ainda divulgue algum pensamento do velho Raiva nesses escritos, mas enquanto esse momento não chega, percebo que faltam dois pontos para o meu. Não há mais tempo, não tinha como escapar. Era chegada a deplorável hora do Good Evening.

Sunday, November 04, 2007

Capítulo XVII.

A porra do celular não parava de tocar. Detesto ser acordado. Deixei tocar, mas insistia e, quando atendi, ouvi aquela voz feminina perguntando:
_Alô! Sabe quem ta falando?
_Alice?
_Não.
_Sofia?
_Ta tão cotado assim é?
_Vai logo, fala quem é de uma vez por todas.
_Se você não identificar minha voz o quanto antes, vou começar a questionar minha atitude, desligar o telefone e esquecer tudo o que você falou. Ou você anda declamando poemas pra todo tipo de mulher no meio da rua?
Jesus Cristo! Era ela! Como voltar a terra, evitar um colapso e, ao mesmo tempo dar uma resposta convincente num espaço de dois segundos? Aí ela insistiu:
_Que foi, ficou mudo?
_Não. Tô tentando me acalmar.
_Então, vai responder a minha pergunta?
_Qual?
_Se você sempre declama poes...
_Só quando é a mulher dos meus sonhos.
_E eu sou essa mulher?
_Tem alguma dúvida?
_Infinitas.
_Me dê uma chance de te mostrar.
_Que horas?
_A hora que você quiser.
_Ta assim é? Não trabalha nem estuda não?
_Nada é mais importante do que ser agraciado pela sua luz.
_Quando tiver pronta te ligo. Você tem carro?
_Nem sei dirigir.
_Quando ligar agente marca em algum lugar. Como é que um homem desse não sabe dirigir?
_Mas sei outras coisas.
_Um dia eu te ensino a dirigir.
_Lua meu bem, não fale em futuro, ele é só uma suposição. Deixa só ouvir a sua voz e ser feliz.
_Valeu! Depois te ligo.
_Ligue!
_Beijos!
_Outros!
Ela desligou e eu comecei a andar pelo quarto querendo ordenar as idéias e correr e sair gritando e esqueci universidade, trabalho, a hora do almoço, meu avô de câncer, o aviso de corte da empresa fornecedora de energia, que eu era alguém, que tinha uma história e que era uma entidade no universo.
Só havia aquela criatura em meu olhar. Meu deus, nem dormi com ela e já estou alucinado. É melhor manter o controle e recarregar o celular. Tenho que bater uma gelada ou então terei uma úlcera de ansiedade á espera de um telefonema.
Há certos momentos nos quais chego a acreditar que é bom, muito bom viver.

Capítulo XVIII.

Vou trocar uma idéia com meu bom e velho amigo Tom Raiva, ver o que anda escrevendo, se está sofrendo. O cara sabe sofrer por um grande amor e seus poemas revelam esse dado. Vou aventurar se ele ta em casa. O cara não gosta de celular, TV, internet, shopping center, vizinhos, sorrisos de cordialidade, imagens sacras, monóxido de carbono, a entonação de ritos tibetanos, comida americana, os imensos seios e a falta de bunda das mulheres do Tio Sam, o hino nacional, estupradores, ladrões e assassinos, pessoas do senso comum, intelectuais, artistas que se acham artistas, encontros de escritores, quem não conhecia Hendrix ou Rimbaud, carros de corrida, moda, estilo, meninos do rock, bolacha recheada, os signos do zodíaco á exceção do signo de câncer, fita do senhor do bom fim, acarajé e azeite de dendê, evangélicos, budistas, mulçumanos, católicos, judeus e qualquer gatinha que não caísse em suas mentiras. As que fingiam que caíam no seu papo sempre mereciam um poema. As que o amavam de fato nunca mereceram uma linha e isso ele justificava com Ciranda de Drummond.
A casa do maluco era no final do Feira VI, quase na divisa com o Pau-de-Légua e, pra minha sorte, a criatura estava em casa na frente da máquina de datilografar, ouvindo o lado B de Tattoo You com um baseado na boca sem se tocar que dava pra ver todo o interior de seu coió por uma fresta do portão, aí eu gritei:
_Ô Tom!
_Peraí! – E fez um sinal com as mãos, parecia que estava inspirado. Nunca escrevia sem estar iluminado. Escrever pro cara nunca foi trabalho, era apenas uma forma de transformar toda aquela angústia e exacerbada sensibilidade em algo concreto. Levantou, tirou o papel da máquina, abriu o portão e veio com esse poema saído do forno:


“Que todas as clarezas sumam dos teus olhos
Freqüentemente cegos para mim
Em sussurros e água limpa
Pura, incongruente e fria
E dispenso teu sorriso
E abomino o seu perdão.

Mas se tive seu amor
Se te perdi
E se as ondas do naufrágio
Que ninguém viu,
Nem mesmo você,
Teimam em banhar
O céu, a lua e a sujeira
Dos teus pés descalços?

E temos que andar
Testemunhas de sonhos que agonizam
Prontos pra se enveredar
Por nova esperança,
Noutro milagre
E finda
Lento,
Só, incerto, mas sincero.

Em cada estrela-cadente
Eu gritava o teu semblante
Esperando misericórdia
De algum deus que compreenda
Que não há como esquecer
Ou simplesmente
Prosseguir.

Deixa a vida bater
E açoitar os nossos corpos
Sem que peçamos ao meteorito
Que fingia ser estrela que caía
E cortava o meu vazio
E consolava meus cabelos.”

Dava pra notar que, enquanto eu irradiava alegria e expectativa com Luana, meu amigo sofria de fato. Aí eu tive que perguntar:
_ Meu caro, quem pode merecer esses versos?
_Se eu contar você não vai acreditar.
_Conte logo essa merda e pare de xurumelas.
_Qual foi a mulher que eu sempre achei a mais bonita da UEFS e tinha que sair de perto dela pra não começar a babar?
_Marília?
_Consegui meu caro, parece som na voz de Cássia Eller: “O amor me pegou e eu não descanso enquanto não pegar aquela criatura”. E peguei.
_Mas Marília...
_Eu sei que ela também gosta de menina, mas isso não chega a amedrontar.
_Mas deveria. Lembro que uma vez estávamos no bar de Zé Burugudú e Marília passou com aquele semblante magnífico que mais se assemelhava a uma índia norte-americana. Apache ou siuxie, sei lá. Aí você olhou para o céu e exclamou: “meu Deus, quando terei uma dessas?”.
_Meu brother, tinha me esquecido desse detalhe.
_Agradeceu ao ser supremo?
_Vou fazer isso agora – E se ajoelhou no quintal e começou a berrar pedindo obrigados e mais obrigados. E começou a chorar e me disse:
_Sabe aquele momento no qual toda essa porra começa a dar alegria, que você esquece de comer ou se olhar no espelho e que e toda sua vida parece subsistir a esse instante? Meu amigo, nunca usei droga mais viciante que aquela guria, perfeição de químicas feromônicas, toque incomparável, irresponsabilidade e leveza...
_Calma porra, você não já sabe como essa onda toda é ou sua percepção só serve pra escrever versos?
_Mas ela parecia que estava amplamente ligada a mim, foram seis dias consecutivos de loucura, entrega e abnegação.
_E ela sentiu isso?
_Pelo que ela me disse, acho que sim - E começou a se levantar e limpar os joelhos.
_Esqueceu uma coisa?
_O quê? – E colocava os óculos escuros e as lágrimas desciam sob a lente.
_Marília tem quantos anos?
_Vinte e um.
_Entenda que essa geração é completamente descrente na profundidade de sentimento, tem que ser tudo bem superficial com pitadas de pós-modernidade. Perderam a capacidade de amar. A covardia de se entregar é inerente a essa contemporaneidade. Viveram a deterioração da relação dos próprios pais. Mas de que adianta te dizer tudo isso se a palavra nos traí e nada poderia definir esse surpreendente estado de espírito?
_Sempre gosto de falar contigo, depois de tudo ela me disse que não sabia ao certo o que estava sentindo, que ao mesmo tempo queria ficar comigo e me mandar ao inferno.
_Será que a lua hétero dela está murchando?
_Sei lá, não queria fazer suposições, só queria que ela voltasse. A vida sem ela passou a ser bem pior que antes de tê-la.
_ Deve ser muito difícil morar na terra pra quem viveu o paraíso.
_Rafa, como é que tudo pode ser, ao mesmo tempo, escuridão e luz?
_Nada é mais barroco que a vida velhinho. Fico aqui te dizendo o que você sempre me disse a vida inteira, parece que sou uma espécie de Platão que retorna todo o pensamento ao próprio Sócrates.
_O que você acha que pode acontecer?
_Nessa sua história?
_Sim.
_O amor não merece opinião alheia.
_É verdade...
_O passado meu caro, só existe quando, no presente, somos atormentados por marés de delicias que nunca voltariam. E o futuro? Até as necromantes fazem suas previsões dentro do presente.
_ “quem não tem presente se contenta com futuro”, mas meu presente sem ela é uma merda.
_Vamos bater uma gelada?
_Demorou!

Capítulo XIX.

É mais que evidente que tivemos que torrar um back que não tinha mais tamanho antes da cerva e, enquanto nosso amigo fechava a massa, ele veio com as habituais brincadeirinhas:
_Já fumei Marília umas cinco vezes essa manhã.
_E o gosto é bom?
_É sério, enquanto ela não aparece sem avisar, fico como um cão à espera do cio de sua fêmea. Cachorro que trata, aperta e fuma incessantemente até que ela chegue. Preciso fazer algo pra distrair a mente. As baladas do Led estão terminantemente proibidas.
Fumamos e continuamos a conversa até o bar de Zé.
_Ela gosta de boa música? _Gosta, só que ainda está engatinhando.
_Porque só o seu conceito estético que é elevado?
_Peraí, ou daqui a pouco você vai vir com aquele papo medíocre de que é tudo uma questão de gosto.
_Menos...
_.Zé!Traz uma véu de noiva na moral.E aí, naquele dia? Como foi seu encontro com minha professora?
_Terrível! Me apresentei, mas ela disse que era casada – Eu sempre fui meio supersticioso, nunca revelava nada sobre uma mulher até que ela ofegasse sob meu edredom. Nem mesmo pra um grande amigo, ainda mais um amigo que se encontra perdidamente alucinado por uma criatura inconstante e belíssima que pode leva-lo a insanidade.
_Eu não te falei sacana que ela era casada?
_Da próxima vez vou te ouvir com mais atenção, mas eu passei grande parte de meus dias te ouvindo, filho da puta! Uma hora temos que agir por nossos próprios calcanhares.
_Ok. Esse celular que ta tocando não é o seu?
_ É, é o meu – Atendi, mas era uma funcionária do setor jurídico da empresa de cartão de crédito que eu tinha dado o calote e ela perguntou:
_Com quem falo?
_Rafael de Oliveira.
_Bom dia senhor Rafael. Aqui é do sistema jurídico da mastercard. No momento consta uma dívida em aberto no valor de 2700 reais em seu nome. O senhor gostaria de parcelar esse valor?
_Espere um pouco – disse o que se passava e passei o celular pra Raiva que começou:
_Sabia que você tem uma bela voz?
_Senhor, esta conversa está sendo gravada.
_Você deve ser daquelas advogadas burguesinhas que se formaram em faculdades particulares e acreditam que existe lei até pro orgasmo. Só transa com gente de seu estrato social. Algum juiz, desembargador ou promotor que faz você se sentir um lixo depois de se vender.
_E aí Tom, que é que ela ta falando?
_Deu bom dia e desligou.
Assim que Tom me entregou o telefone, ele começou a tocar em minha mão. Deixei chamar mais um pouco pra que não transparecesse que aquele telefonema era a coisa mais importante de minha história recente. Era ela:
_Ta onde seu maluco?
_No abominável mundo do Feira VI.
_O que você sugere?
_Minha casa.
_Tem garagem?
_Tem.
_Assim que chegar aí te dou um toque. Beijos!
_Infinitos!
Ela desligou e eu esvaziei o copo como água, e a curiosidade de nosso amigo se manifestou:
_Quem é essa Rafa capaz de deixar sua cara com essa débil expressão de felicidade?
_Depois te conto.
_Já sei, se me contar não vai dar certo, você tem que comer a criatura primeiro, mas aí quando vale a pena, o senhor transforma em prosa.
_Meu velho, tenho que vazar agora, depois agente se fala. Vou deixar essa paga.
_Ta vendo? Seu velho amigo na fossa e você o abandona por uma carne mijada. Elas são capazes de fazer o mundo girar, eu sei.
_E eu vou girar junto com o mundo. Vou nessa.
_Valeu.
_Gostei do poema.
_Só!
E saí em disparada sem nenhuma misericórdia de meu camarada. Nossa dor é artigo de uso pessoal e intransferível. E pensava em Lua sem ouvir o som dos meus passos e pensava no fim. Pare de tragédia, o lance nem rolou e você já sente que vai acabar? Mas tudo tem um fim, não tem?
O que foi que terminei de dizer? Que só existe o presente, então vou tratar de viver esse instante. Sentido, carreira, prestígio, ideologia, crença e qualquer outra concepção que queiramos dar a essa árvore da vida não possui significado algum. Se a humanidade pudesse perceber a grandiosidade de amar. Parece papo meio hippie, mas fazer o quê?

Capítulo XX.

Porra, ela já ta chegando e a casa ta um lixo. Eu tinha alguns minutos pra comprar papel higiênico, uma vez que só pegava os dos banheiros da UEFS, limpar o banheiro superficialmente jogando detergente no vaso, organizar a pia da cozinha e esconder no quintal os pratos e copos que são verdadeiras colônias de fungos, sem falar das baganas e sementes e talos e pedaços de seda espalhados por toda a casa. Nunca contava a uma mulher que fumava maconha antes de ter a plena certeza de que ela aceitaria até mesmo um homicídio. Ou o leitor esqueceu da gatinha de pedagogia alguns capítulos acima?
Como assassinar o tempo até ela ligar? Tenho que fazer a barba, tomar banho, cortar as unhas e escovar os dentes pra diminuir esse barrunfo. Não, tenho mesmo é que ir ao mercadinho comprar um papel higiênico e uma pastilha extraforte.
A caixa do mercadinho tinha uma cara de vadia ao extremo com aquela leviana expressão de puta com chicletes na boca. Quando passava o troco ficava olhando pra seus olhos como se quisesse chupar sua pica. Tom Raiva já deu umas voltinhas nela. Disse que parece atriz pornô. Que uma certa vez, ele e Flávio ficaram revezando com a criatura a noite toda e os dois ao mesmo tempo em orifícios diversos e esses lances habituais em películas pornográficas.
Quando ia comprar leite de manhã ficava com desejo de enrabar a figura, mas só tinha vontade no horário de serviço dela. Mas que dava vontade, isso dava!
No que ia abrir a carteira, ouvi o celular:
_Onde é sua casa?
_Não tem aquela rua entre a UEFS e o Feira VI?
_Sim, fale.
_Siga direto até a última esquina do conjunto, minha casa é a da esquina.
_Valeu, me espere na porta.
Paguei e saí em disparada pra chegar antes, mas ela me alcançou no meio de minha rua:
_Vai pra onde com essa pressa bonitão? Quer carona?
_É claro – E parei de correr, controlei a respiração e entrei no carro dela, ou do marido, sei lá!
_Qual é a sua casa?
_Aquela da esquina á esquerda.
Desci do carro, abri o portão pequeno e, por dentro da casa, abri o da garagem e ela entrou em sua abóbora em formato de automóvel.
_Vai declamar quem hoje pra mim? Por acaso seria Shakespeare? – Lua vestia uma calça jeans apertadíssima e uma blusa branca de crochê deixando a barriga de fora ao descer do veículo azul-marinho.
_Não Lua. Hoje faremos poesia – E me aproximei, ela tentou dissimular, mas peguei em seu queixo, depois em sua nuca e o beijo fora inevitável. A suavidade labial e aquele hálito inefável pareciam poderosos deja-vus que me escravizariam pra o resto de meus dias, mas o receio poderia estragar aquele instante. Por isso me entreguei como um fanático em presença da própria divindade adorada, sentei-a em meu colo no sofá, escorreguei meus calos pelas suas costas, abri o sutiã, mas ela repeliu segurando meu braço:
_Esqueceu queridinho que as mulheres aprenderam com suas antepassadas que nunca devem se entregar na primeira noite?
_Por quê? Eu te acharia uma puta? E, além do mais, é dia ainda.
_Não, quanto maior a vontade, maior o prazer.
_Se você quiser eu espero a vida toda.
_Menos. Vou nessa, acho que não tô fazendo a coisa certa – Ela se levantou, fechou o sutiã e se dirigiu até a varanda.
_O que não seria a coisa certa? Trair seu marido?
_Não, me relacionar contigo antes de resolver minha vida.
Pairou um silêncio de ampulheta entre nós e ela quebrou a monotonia:
_Me arruma um copo com água?
_Gelada?
_Não, misturada.
_Rapidinho! – abri a geladeira, peguei o vaso, coloquei metade de água gelada e a outra metade completei do filtro. Liguei o som enquanto ia levar a água. Entreguei-a, ela bebeu, veio em minha direção e começou a se questionar enquanto eu, que havia novamente sentado no sofá, admirava sua beleza com cara de idiota querendo se camuflar.
_Seria uma merda não seria?
_O quê Lua?
_Se eu estragasse nosso primeiro encontro com meus questionamentos existenciais – E começou a tirar a blusa, jogou-a em meu rosto e até hoje posso sentir a textura do tecido e lembrar a límbica magia dos movimentos dos seus quadris enquanto descia a calça mirando toda a perplexidade em meus olhos. Ela tinha noção do seu poder e, com toda a magnitude de um milagre, sentou no meu colo, tirou o sutiã, passou a mão esquerda no meu rosto e me beijou como a um santo com os olhos entreabertos. Eu não podia ter pressa, mostrar que queria chegar ao objetivo final e aterrar toda a beleza do momento. Queria absorve-la pelos meus poros, senti-la completamente e beijei a sua nuca, ela gemeu e foi deitando no sofá. Eu levantei, ajoelhei-me no chão e comecei a alisar todos os milímetros do seu corpo e beijei e lambi todos esses mesmos milímetros e tirei a calcinha e Vênus visgava muito em meus dentes, em minha língua, em meu esôfago e eu beijava aquela bocetinha deslumbrante e bebia aquele sumo e Luana começou a gozar e afastar minha cabeça com as pernas trêmulas. Respirou profundamente, ficou um tempo olhando para o teto e falou:
_Vou tentar retribuir a altura – E minha pica jamais imaginaria que uma boca como a de Lua iria envolve-la em sonhos, calor e carícias siderais.
Ela pediu pra que eu ficasse de pé:
_Você se ajoelhou pra eu gozar, agora é minha vez – E passou a língua desde a virilha até a cabeça da pica e foi colocando quase todo na boca e tirando suavemente em movimentos sucessivos e eu tive que pedir pra ela parar pra não gozar, mas ela insistiu, só que eu me ajoelhei, beijei sua boca e deitei-a no chão.
Lua abriu as pernas e minha vida se abriu impulsionada pelo impossível aparentemente finito, materializado em paisagem carnal e sacra, musicada por nossos corpos em abandono, perdidos de nós mesmos, perdidos em nós mesmos desde agora.





Capítulo XXI.

É claro que não poderia deixar o leitor de fora do ambiente, sem sentir que além de toda a miraculosidade inerente a um sonho, ainda tocava To Love Somebody na voz sem comentários de Janis no exato momento em que Lua, deitada no chão sujo da sala, recebia toda a minha paixão transmutada em sêmen que escorria de seus quadris e me estendeu os braços maternalmente e nos beijamos como condenados e começou a tocar Kozmic Blues.

Sunday, September 16, 2007

Capítulo XVI.

_Tome o verso e termine o poema – Alice me entregou o guardanapo amassado na porta do motel e eu comecei a lembrar do final da noite, dos melhores amigos humilhando-se por ela num barzinho na Matriz e do instante em que eu, possesso pela Santa Deusa Mãe Literatura, apanhei o guardanapo e dediquei-lhe estes versos:
"Talvés seja a expressão de prazer
Ou seu olhar coberto de brumas
Mas não há quem possa fumar
Com a mesma graça com que fumas".
Ela entendeu o meu poema e eu, o seu sorriso.
E espero que o leitor entenda que o que era pra ser dito, já foi dito no capítulo XV.

Capítulo XVII.

A porra do celular não parava de tocar. Detesto ser acordado. Deixei tocar, mas insistia e, quando atendi, ouvi aquela voz feminina perguntando:
_Alô! Sabe quem ta falando?
_Alice?
_Não.
_Sofia?
_Ta tão cotado assim é?
_Vai logo, fala quem é de uma vez por todas.
_Se você não identificar minha voz o quanto antes, vou começar a questionar minha atitude, vou desligar o telefone e esquecer tudo o que você falou. Ou você anda declamando poemas pra todo tipo de mulher no meio da rua?
Jesus Cristo! Era ela! Como voltar a terra, evitar um colapso e, ao mesmo tempo dar uma resposta convincente num espaço de dois segundos? Aí ela insistiu:
_Que foi, ficou mudo?
_Não. Tô tentando me acalmar.
_Então, vai responder a minha pergunta?
_Qual?
_Se você sempre declama poes...
_Só quando é a mulher dos meus sonhos.
_E eu sou essa mulher?
_Tem alguma dúvida?
_Infinitas.
_Me dê uma chance de te mostrar.
_Que horas?
_A hora que você quiser.
_Ta assim é? Não trabalha nem estuda não?
_Nada é mais importante do que ser agraciado pela sua luz.
_Quando tiver pronta te ligo. Você tem carro?
_Nem sei dirigir.
_Quando ligar agente marca em algum lugar. Como é que um homem desse não sabe dirigir?
_Mas sei outras coisas.
_Um dia eu te ensino a dirigir.
_Lua meu bem, não fale em futuro, ele é só uma suposição. Deixa só ouvir a sua voz e ser feliz.
_Valeu! Depois te ligo.
_Ligue!
_Beijos!
_Outros!
Ela desligou e eu comecei a andar pelo quarto querendo ordenar as idéias e correr e sair gritando e esqueci universidade, trabalho, a hora do almoço, meu avô de câncer, o aviso de corte da empresa fornecedora de energia, que eu era alguém, que tinha uma história e que era uma entidade no universo.
Só havia aquela criatura em meu olhar. Meu deus, nem dormi com ela e já estou alucinado. É melhor manter o controle e recarregar o celular. Tenho que bater uma gelada ou então terei uma úlcera de ansiedade á espera de um telefonema. Há certos momentos nos quais chego a acreditar que é bom, muito bom viver.

Saturday, April 28, 2007

Capítulo XV.

Naquela noite esqueci de contar quantos socos, bicudas e cotoveladas aquele cara levou depois que Raiva e Seu Flávio entraram em cena e de lembrar o caminho que me levou aquele quarto de motel na Presidente Dutra, mas Alice era gostosa, com aquelas sobrancelhas estilo Elizabet Taylor, aquela tatuagem de duende entre a bunda e a perna esquerda, borboletas nas batatas, ideogramas no pescoço e que bocetinha linda tinha aquela velha amiga. Eu metia, metia e nada de gozar e tirava da boceta e colocava na boca e de novo na boceta e já havia tentado posições diversas e pensei que podia estar nervoso pelo fato de conhece-la há uma cara, até que ela veio com aquela frase pomposa e veemente:
_Come meu cu vai porra!
E o cu de Alice era tão apertado quanto meu coração naquele instante e eu gozei e gritei suando e sorrindo e notei que tinha um espelho no teto; eu sempre fui desligado mesmo.
Dormimos no motel e, pela manhã, vimos que ninguém tava com aqueles oitenta e dois reais e tive que ligar pro velho Carlinhos no Feira Quatro pra que fosse me tirar da enrascada.
_Meu filho, me tire dessa, tô precisando que você me empreste 82 reais que eu vim parar no Stillus Motel, não sei como, com uma figura e dormi nessa merda sem um centavo.
_Kákakakaka...Qui, qui, qui...Você ta fudido mesmo sacana que eu tô sem um conto – Como eu detestava aquela risada.
_Tô na merda mesmo!
_Eles aceitam cartão de crédito?
_Filho da puta!
_Daqui a pouco passo pra te pegar, ou melhor, te salvar.
_Valeu mesmo...
_Pare de se humilhar.
_Ok.
O sacana foi mais esperto que eu. Ganhou dinheiro fazendo próteses odontológicas e largou o curso de história e todo o engodo do ensino. Um grande piadista e uma criatura de bom gosto musical.
Mais são muitos personagens e eles borbulham em minha cabeça e, muitas vezes são mais vivos quando não escrevo. Nesses meses sem literatura e sem a sagrada missão da incansável busca da imortalidade nas páginas obituárias, os personagens crescem, muitos imprevisíveis e sem importância que acabam galopando e seus sorrisos são reais. Como escrever sobre delírios e sentimentos e frustrações e sonhos de estrelas além? É preciso sangue nessas páginas. Não sangue menstrual, mas alguma violência, um esquartejamento, um santo que nos envolva em música e éter e comida congelada de self-services de posto de gasolina. Algo ao mesmo tempo trágico, épico, contemporâneo e sensual, mas sensual é ser vulgar? Claro que é, e é nisso se encontra a sua ascensão. A primeira coisa seria delimitar um tema grandioso envolto em mistério profundo, adequado à linguagem universal dos best-sellers ocidentais com certos momentos disfarçando uma humanidade qualquer. Mas você quer que as palavras tomem vida por geração espontânea, ao léu e sem destino pré-estabelecido? O que o leitor tem a ver com essa merda toda? Creio que se o leitor estivesse interessado em discutir a relação do artista com a sua obra ira, com certeza, ás cartas de Van Gogh que, segundo Miller em Tropic of Cancer: “É a vitória do indivíduo sobre a arte”, mas isso já é uma outra história. Então deixemos o célebre pintor holandês e suas comoventes cartas ao irmão Théo para voltarmos a atmosfera feirense de um quarto de motel, onde eu não agüentei ver Alice no chuveiro e o contraste das tatuagens com sua pele branca lembrou-me Cruz e Souza. “Ó Formas alvas, brancas, Formas claras...” e o cheiro de perfume de erva doce em sua pele, a água com negro gosto de cabelos frios e minha pica no meio de suas pernas e a advertência do ministério da saúde sobre fuder sem camisinha e eu todo já lá dentro e que a sorte me proteja. Acho que protegeu. Tô vivo até hoje, escrevendo e de pau duro devido à lembrança daquele instante liquefeito. This is rock’n roll baby, the real one!

Tuesday, February 20, 2007

Ilustre e muito estimado leitor duma época em que não se lê, o capítulo XIII está eletrizante e, ao leitor de primeiro tapinha ou que se perdeu nos deslizantes e desordenados trilhos da narrativa: É só mandar um e-mail pra netantonio@gmail.com e o leitor receberá a obra desde o capítulo primeiro. Mas comentem essa zorra!
Capítulo XIII.
Quando entramos no local que estava repleto de mibs(meninos in black) como Emerson definiu, fomos direto ao bar e a cerveja descia como água pela boca anestesiada. Souza ficava numa situação crítica com a maxila proeminente, mordendo o lábio superior e retorcendo a mandíbula para a direita e para a esquerda. Ele sempre queria mais. Todos queriam mais e a fila no banheiro fora inevitável. Tom Raiva deu a velha paranóia de atleta e disse que não tava mais a fim e foi pra frente do palco esperar a pancadaria correr solta pra ele se ambientar. Quando tava tecando a minha dentro do banheiro ouvi o começo do show e também fui pra frente do palco, mas eu era um cara doente, nunca estava satisfeito, olhei em volta e notei que aquilo não me representava como há treze, sei lá, quinze anos atrás. Sou meio megalomaníaco e quando me vi cantando e dançando como todos a minha volta, senti a velha angustia e o desprezo em fazer parte de qualquer contexto coletivo determinado. E voltei ao bar e o calabouço da minha memória não esquecia aquela deusa, tampouco aquele beijo e eu realmente queria estar com ela num quarto qualquer ao som de Hunky Dory do grande Bowie, uma obra magistral. Notei que não estávamos a mais de meia hora no local e eu já tinha tomado umas seis cervejas e Alice começou a me olhar com aquela sobrancelha arqueada, cigarro nos lábios e a leviana expressão do seu sorriso misturada com o olhar. Souza, Flávio, Emerson e Josué praticamente não saiam do banheiro, hipnotizados pela bicha malvada. Deu vontade de escrever qualquer coisa pra Alice. Peguei um guardanapo e saí em busca duma caneta. No instante em que um conhecido de vista tava me emprestando a pena, o bom e velho Duda Brandão sem pseudônimo, poeta e grande compositor de rock’ roll, apareceu do nada com aquele sorriso de cumplicidade e a eterna felicidade da certeza de estar no caminho certo; mais perto dos prazeres e da vida e o mais longe possível das instituições sociais:
_E aí velho Rafa!? Chega me deu um alívio quando te vi com a cerveja na mão. Me disseram que cê tinha parado de beber. Pensei que meu velho amigo havia enlouquecido. Tom Raiva ficou pirado com esses lances de malhação e jiu-jitsu. Não vá nessa onda não. Agente morre e fica essa porra toda aí.
_Não, tinha só dado um tempo, meu estomago não tava muito bem.
_E minha mãe...
_Que é que tem?
_Disse que agora abriu uma sede do A.A. lá no bairro, que era pra eu freqüentar as reuniões e essas coisas, quem é doido!?
_E cê falou o quê?
_Que não podia freqüentar o A.A. Já tinha passado dessa lição, tô agora na lição B.B.
_Hahahaha!..
_E agora que nasceu seu segundo filho meu velho, o que vai mudar?
_Em mim pouca coisa, quanto a ele, espero que cresça bonito e saudável e goste de rock. Me dê uma cerveja!
_Tome a ficha, vá lá pegar – eu tinha comprado algumas fichas pra encarar aquela noite e quando eu entreguei uma assim que me pediu, ele ficou olhando com uma teatral cara de felicidade mesclada com espanto e disse:
_Melhor coisa que fizeram por mim hoje, por isso que sou seu amigo – E foi pegar a cerva.
Quando Duda voltou a trupe estava toda reunida e, no instante que ele viu que tava todo mundo se mordendo, foi intimando na hora:
_E aí galera, quem é que ta com essa bicha?
_Qualé seu Duda?
_E aí seu Flávio?
_E aí seu Souza, quem é que ta portando?
_Fique na sua, esse aqui é Josué, um brother nosso jogador de futebol.
_E aí mano, massa?
_De boa!
_E aí seu Emerson!
_Ó pra essa porra! Cê tinha que ta aqui né sua desgraça?
_Num já sabe?
Enquanto isso, Souza ia tirando a pedra do bolso e me entregando, chapado de pó com a cara de bicho-do-mato bicudo:
_Rafa, vá lá com Duda e Alice que agente foi agora – tudo bem que o som tava alto, mas ele não precisava gritar no meu ouvido daquela forma e aproveitei pra chamar Alice que já tava se derretendo por um galego malhado com cara de playboy.
Ela veio perguntar se o cara podia colar, mas é claro que limamos o intruso rapidamente. Só que ele não se tocou e ficou plantado ao nosso lado na fila do banheiro que era perto do bar onde tava a rapaziada. Estendeu a mão pra Duda que olhou pro playboy de uma maneira desdenhosa e caricatural e virou-lhe a cara. O velho Brandão detestava seres do senso comum que se comportavam e se vestiam segundo as tendências da moda de sua contemporaneidade. Mas Duda havia esquecido que esses garotos bombados atingem aquela forma física por meio de exercícios, suplementos e esteróides anabolizantes que alteram seu humor. E foi com um extremo mau-humor que o cara agarrou Duda pelo pescoço e eu me interpus pra separar querendo evitar que se propagasse uma confusão enquanto eu tava com aquela pedra de pó em minhas mãos, mas o velho Duda, que tinha um terço da massa corpórea do cara e dez anos a mais, deu um soco na cara do cidadão e a putaria tava formada.

Monday, January 15, 2007

Capítulo XII.

O Feira VI era um daqueles conjuntos populares de casas de dois ou três cômodos construídas em meados da década de oitenta para abrigar policiais e outros funcionários públicos. Com suas ruas de calçamento e sua estratégica posição entre a UEFS e o batalhão de polícia, esse conjunto era responsável por abrigar a maior parte da população estudantil da universidade e os donos das casas cobravam preços altíssimos em alugueis de cubículos em péssimo estado, sem segurança, com goteiras, mofo, ratos e o diabo a quatro.
Muitas vezes os habitantes construíam moradias no quintal ou batiam laje acima da própria pra alugar pros miseráveis da instituição universitária. A casa era alugada dessa forma: “Aqui nesse quarto cabem dois beliches, nesse aqui três, cada estudante dá cinqüenta e a casa fica por duzentos e cinqüenta”. Esse era o pensamento dos sovinas do Feira VI em relação aos milhares de jovens oriundos de todas as regiões da Bahia e outros estados em busca de um canudo pra serem alguém na vida. Hoje em dia o bairro está adotando as construções verticalizantes, restaurantes, casas noturnas, farmácias, sorveteria, igrejas, armarinhos, pontos de venda de entorpecentes, pastelaria, casas de material de construção, etc. Como os bancos estão na UEFS logo ao lado, o Feira VI só precisaria de funerária e cemitério pra virar uma cidade, uma vez que o batalhão de polícia se confunde com o bairro e representaria a delegacia. Ninguém precisa mesmo de prefeitura ou qualquer espécie de governo fora do próprio espírito.
Eu mesmo só fiz o curso de Letras porque imaginava que podia ganhar dinheiro falando da vida e obra de seres atormentados como eu; tudo mentira. O formato é chato, os colegas de trabalho e os diretores são abomináveis e todos sabem que o ensino na verdade é um engodo desgraçado para as almas que gostariam de estar fudendo, ou na praia, ou cantando ou, simplesmente, olhando para o céu com os sonhos bem no chão.
E, antes do show dos Garotos Podres nós tivemos que fazer o velho ritual de contatar Josué, um brother que já foi jogador profissional de futebol e que hoje disputa o torneio intermunicipal de Feira no time do bairro do barão do pó que muito o estimava em virtude de suas boas atuações em campo. Sempre gostei mais de minha gelada e meu baseadinho. Cocaína nunca foi minha droga predileta, eu ficava nervoso, introspectivo, sem fome, o álcool não fazia efeito, se fudesse não conseguia gozar e sempre a espera angustiante por algo que nunca iria acontecer, sem falar da depressão no outro dia com o corpo moído e o nariz na merda. Mas era noite de rock’n roll e algumas linhas poderiam facilitar a atuação na frente do palco num show de hard-core.
O circo estava montado: Iggy Pop de fundo, várias cervejas na casa de Souza que é um coligado que fazia mestrado em botânica e quando bebia dizia que tinha castelo em Portugal, que foi prum show dos Ramones em Buenos Aires, que já correu a São Silvestre e jogou no Guarani de Campinas e que tinha um pitbull que buscava mulher em Porto Alegre pra ele pelo braço. A parte verdadeira é que quando brigava com a mulher, se transformava numa criatura capaz de beber, cheirar, quebrar o pau e destruir, mas tinha um coração bom e não tinha apego material; grandes requisitos pra aquele lunático se tornar meu amigo.
Lá também estavam Emerson, Alice, uma guria de Física, Flavio e Tom Raiva e quando Josué chegou de moto-taxi com aquela pedra de dez gramas, a comoção foi geral e Alice foi logo esquentando o prato e Souza aumentou o som e começou a pular. Aquele ali gostava da bicha malvada:
_Esquenta o prato! - Souza pulava e seu cabelo loiro trançado subia enquanto seu corpo descia e todos começaram a sorrir e a felicidade existia nesse mundo sob diversas perspectivas. Essa era a conclusão a que cheguei naquele instante.
_Faz duas de cada -bradou Emerson.
_Uma de cada - Flávio sugeriu.
_Bota logo uma grande pra Josué que fez o avião - disse Souza enquanto preparava a narina e fazia o canudo com uma nota de dez reais. Aquela nota de dez reais de plástico foi uma mão na roda pros aspiradores de pó.
_É mesmo - e Tom Raiva mal terminou de falar e pegou a colher, tirou um pedaço, bateu e fez uma linha que não tinha mais tamanho nem grossura com o cartão telefônico, mas Josué deu de uma vez e quando tirou a cara do prato, soltou a respiração e falou:
_Agora sim!
_Faz uma de cada, depois outra rodada - sugeri enquanto abria uma cerveja.
_E deixe um pouquinho pra fazer o mesclado com a massa.
_Não Alice, vá com sua onda de sacizeira pra casa do caralho - sacizeiro é quem gosta de fumar pedra e depois que Raiva escaldou a menina, ele cheirou a dele e rodou o prato.
Aquele processo de bater, alinhar, se aplicar e beber levou cerca de duas horas e foi difícil convencer aqueles cães a largar o osso pra ir pro show. Pegamos um táxi e chegamos mordendo os próprios dentes com os nervos a flor da pele e tencionados. Todo mundo sério.

Sunday, November 12, 2006

Capítulo XI.

Naqueles ínfimos minutos, transformei-me noutro ser. Todo o tédio da existência dissipou-se como éter e fiquei abestalhado, eufórico, sem fome, em estado de choque de alegria e lembrei de respirar.
Acredito que tenha ficado muito tempo parado ao sol sem encher os pulmões de oxigênio e quando inspirei, senti uma dor na minha pleura e acredite, quem estiver nesse instante com os olhos nestas linhas, meu coração chegava a doer e não é exagero de escritor querendo poetizar ou conferir dramaticidade; todo o tórax doía e agradecia a Deus por uma dor como aquela. Com aquela dor estava vivo e irmanado com a terra. Permaneço todos os dias como um cadáver á cata de resquícios dessa hora.
É evidente que depois do ocorrido, jamais conseguiria pensar em aula ou trabalho. O bar de Zé Burugudú era o albergue mais próximo onde eu podia bater uma gelada e me acalmar. O laboratório da minha mente não parava de rever a cena com novas expectativas e significados, tentando criar vacinas e compostos e aditivos. Eu queria desfrutar de todos os litros daquela paixão absoluta derramada aos baldes sobre minha atmosfera entorpecida e acredito que continuo nessa ladainha até hoje. Velha carpideira de um funeral interminável.
Sempre bebia no balcão, mas quis sentar mais afastado, na parte externa onde a deplorável trilha sonora não pudesse atrapalhar minha odisséia particular. E Zé chegou com aquela cara de gente boa, sangue bom:
_E aí macho!
_E aí Zé!
_Vai querer qual?
_A mais gelada.
_Demorou.
Zé voltou com uma cerva véu de noiva pra incrementar minha fantasia:
_Essa ta boa macho?
_Melhor não existe.
_Cadê a namorada?
_Deve ta na aula.
Na época namorava uma figura que fazia História chamada Janaína e lembrei que tinha marcado de almoçar com ela, mas já estava quarenta minutos atrasado. Jana, uma guria de Dias d’Ávila que pensava que o amor era como uma música de Marisa Monte. Nada contra a cantora, mas ela ficava o tempo todo cantarolando as músicas dela no meu ouvido com aquela voz desafinada quando estávamos sozinhos. Ninguém merece!
Mas Janaína possuía um corpinho escultural em virtude da prática de balé ao longo da vida. Tinha uma bunda lindíssima, mas nossa relação era incompleta. Como dormir com uma garota com aquela bunda se ela não me dava aquele cuzinho? Eu já havia tentado de todas as formas, mas ela era muito cética. Já lambi, chupei, comprei lubrificante e nada. A criatura tinha alguma espécie de bloqueio psíquico. Ela possuía a visão de mundo muito curta pra uma mulher moderna.
Alguns dias depois estava com Emerson, o rato de biblioteca e Janaina numa Pizzaria do Feira VI á noite. A pizza estava sendo servida e Lua chegou de mãos dadas com o marido; uma criatura gorda, amarela, feia e com jeito e roupa de burguês e um garoto de cerca de onze anos que pensei que poderia ser seu filho. Ela me cumprimentou com um tênue sorriso e, logo depois que eu havia lido os lábios do marido dela perguntando quem eu era ao se sentarem, Janaína foi rapidamente interrogando:
_Quem é essa aí? – eu sentia mais que ciúmes no seu tom de voz, rolava muito ódio na sua entonação, e Emerson começou a brincar:
_E aí, ficou transtornada foi?
_Não se meta. Quem é ela Rafael?
_ Fale baixo, não ta vendo que ela é casada? É professora de Literatura.
_Sua professora?
_Não, de Tom. Agora pare de encher o saco que eu quero comer em paz.
Depois que bradei, reinou um mórbido silêncio e a prosa tomou outro rumo e nossos olhares ás vezes se encontravam e eu não queria evitar. Me toquei e esqueci as investidas com os olhos. Ela jamais seria feliz com aquele cretino a não ser que fosse apenas uma puta materialista. Ás vezes o cara pode ser até gente boa e o conceito estético da figura seja específico para gordos que se vestiam como almofadinha.
Janaína enlouquecera com a beleza de Lua. Havia poucos exemplares como aquele sob a face desse planeta. Se fosse uma mulher feia ela não tinha ligado.
Emerson, que comia como um porco com uma camisa do Black Sabbath, começou a falar de boca cheia enquanto bebia vinho como se fosse refrigerante:
_E aí Rafa, vai pro show dos Garotos Podres?
_E a banda ainda existe?
_É claro, os Stones existem.
_E vai ser onde? Em Salvador?
_Não, aqui em Feira na Euterpe, um galpão no comércio onde rola show de rock’n roll.
_É seu Emerson, passou um curta da adolescência de cabelo moicano, calça jeans rasgada e brincos, com as camisas de banda e coturno ou tênis sujo com os vinis dos caras embaixo do braço. Hoje em dia até as crianças usam calça rasgada e cabelo estilo punk. A indústria cultural consegue transformar tudo em produto. Antes éramos taxados de marginais e drogados e as mães de família do recôncavo desciam da calçada pra não passar perto de gente como nós. Nenhuma alusão a Tchítchicov de Gógol, só que até as almas tem seu preço. As almas vivas. Entende meu amigo?
_E as almas sempre tiveram o seu preço e é dos homens desalmados, essas almas sem valor ou, com certo valor de barganha, á depender de que ângulo se olhe.
_Não sei não. Existem coisas que repugno.
_Você é muito cristão. O cristianismo derrota um homem. Lembre-se que foi após uma crise religiosa que Gogol queimou os originais da segunda parte de Almas Mortas antes de vagar como andarilho até se deixar morrer de inanição. Criaturas surpreendentes estes gênios de outrora. Não há mais pessoas sensíveis a esse ponto hoje em dia. A sensibilidade dos gênios de hoje é ofuscada por glamour e cocaína.
_Ô conversa chata - Jana reclamou e fez uma cara de desdém misturada á incapacidade de discutir qualquer assunto fora da esfera acadêmica. Meu amor por aquela menina havia sido tão mágico quanto qualquer utensílio de vitrine de loja de mágica que cobiçava na infância. Quando levava pra casa perdia a graça.
Naquela noite, enquanto saia da pizzaria com Janaína e Emerson sem olhar propositadamente pra mesa de Luana, percebi que a deplorável iluminação do Feira VI fazia com que as nuvens se tornassem avermelhadas e pensei em vikings e cavalos alados nas nuvens e dragões e belas mulheres vestidas com roupas idênticas as das capas das revistas de Conan. Imaginei Lua com aqueles trajes sensuais. O nome da revista em quadrinhos era A espada selvagem de Conan. E aquela menina que queria ser historiadora fazia com que me sentisse um ser bárbaro e bestial. É que ela gostava que eu metesse a pica com violência, esticando o cabelo, dando tapa na cara e na bunda e pedia pra eu cuspir no seu rosto e bebia meu esperma até a última gota, mas dizia que só me dava o cuzinho se eu casasse com ela e ficava cantando as músicas de Marisa Monte com aquela voz antipática depois que trepávamos. Sempre tive uma consideração especial pelas mulheres que engoliram meu sêmen, sei que ainda existe algo de mim nelas. Encontrei-a certa ocasião em Feira alguns anos depois de termos terminado o namoro e ela tava com a bunda tão perfeita com aquela calça jeans-claro apertada que fui forçado a elogiar:
_Nunca te vi tão bonita em minha vida.
_Deve ser porque você nunca soube cuidar de suas mulheres.
_Pra quê esse ódio?
O olhar dela era capaz de esfolar-me vivo. Jamais haveria diálogo ou rememoração.
É melhor voltarmos as nuvens, as nuvens vermelhas...