Sunday, November 12, 2006

Capítulo XI.

Naqueles ínfimos minutos, transformei-me noutro ser. Todo o tédio da existência dissipou-se como éter e fiquei abestalhado, eufórico, sem fome, em estado de choque de alegria e lembrei de respirar.
Acredito que tenha ficado muito tempo parado ao sol sem encher os pulmões de oxigênio e quando inspirei, senti uma dor na minha pleura e acredite, quem estiver nesse instante com os olhos nestas linhas, meu coração chegava a doer e não é exagero de escritor querendo poetizar ou conferir dramaticidade; todo o tórax doía e agradecia a Deus por uma dor como aquela. Com aquela dor estava vivo e irmanado com a terra. Permaneço todos os dias como um cadáver á cata de resquícios dessa hora.
É evidente que depois do ocorrido, jamais conseguiria pensar em aula ou trabalho. O bar de Zé Burugudú era o albergue mais próximo onde eu podia bater uma gelada e me acalmar. O laboratório da minha mente não parava de rever a cena com novas expectativas e significados, tentando criar vacinas e compostos e aditivos. Eu queria desfrutar de todos os litros daquela paixão absoluta derramada aos baldes sobre minha atmosfera entorpecida e acredito que continuo nessa ladainha até hoje. Velha carpideira de um funeral interminável.
Sempre bebia no balcão, mas quis sentar mais afastado, na parte externa onde a deplorável trilha sonora não pudesse atrapalhar minha odisséia particular. E Zé chegou com aquela cara de gente boa, sangue bom:
_E aí macho!
_E aí Zé!
_Vai querer qual?
_A mais gelada.
_Demorou.
Zé voltou com uma cerva véu de noiva pra incrementar minha fantasia:
_Essa ta boa macho?
_Melhor não existe.
_Cadê a namorada?
_Deve ta na aula.
Na época namorava uma figura que fazia História chamada Janaína e lembrei que tinha marcado de almoçar com ela, mas já estava quarenta minutos atrasado. Jana, uma guria de Dias d’Ávila que pensava que o amor era como uma música de Marisa Monte. Nada contra a cantora, mas ela ficava o tempo todo cantarolando as músicas dela no meu ouvido com aquela voz desafinada quando estávamos sozinhos. Ninguém merece!
Mas Janaína possuía um corpinho escultural em virtude da prática de balé ao longo da vida. Tinha uma bunda lindíssima, mas nossa relação era incompleta. Como dormir com uma garota com aquela bunda se ela não me dava aquele cuzinho? Eu já havia tentado de todas as formas, mas ela era muito cética. Já lambi, chupei, comprei lubrificante e nada. A criatura tinha alguma espécie de bloqueio psíquico. Ela possuía a visão de mundo muito curta pra uma mulher moderna.
Alguns dias depois estava com Emerson, o rato de biblioteca e Janaina numa Pizzaria do Feira VI á noite. A pizza estava sendo servida e Lua chegou de mãos dadas com o marido; uma criatura gorda, amarela, feia e com jeito e roupa de burguês e um garoto de cerca de onze anos que pensei que poderia ser seu filho. Ela me cumprimentou com um tênue sorriso e, logo depois que eu havia lido os lábios do marido dela perguntando quem eu era ao se sentarem, Janaína foi rapidamente interrogando:
_Quem é essa aí? – eu sentia mais que ciúmes no seu tom de voz, rolava muito ódio na sua entonação, e Emerson começou a brincar:
_E aí, ficou transtornada foi?
_Não se meta. Quem é ela Rafael?
_ Fale baixo, não ta vendo que ela é casada? É professora de Literatura.
_Sua professora?
_Não, de Tom. Agora pare de encher o saco que eu quero comer em paz.
Depois que bradei, reinou um mórbido silêncio e a prosa tomou outro rumo e nossos olhares ás vezes se encontravam e eu não queria evitar. Me toquei e esqueci as investidas com os olhos. Ela jamais seria feliz com aquele cretino a não ser que fosse apenas uma puta materialista. Ás vezes o cara pode ser até gente boa e o conceito estético da figura seja específico para gordos que se vestiam como almofadinha.
Janaína enlouquecera com a beleza de Lua. Havia poucos exemplares como aquele sob a face desse planeta. Se fosse uma mulher feia ela não tinha ligado.
Emerson, que comia como um porco com uma camisa do Black Sabbath, começou a falar de boca cheia enquanto bebia vinho como se fosse refrigerante:
_E aí Rafa, vai pro show dos Garotos Podres?
_E a banda ainda existe?
_É claro, os Stones existem.
_E vai ser onde? Em Salvador?
_Não, aqui em Feira na Euterpe, um galpão no comércio onde rola show de rock’n roll.
_É seu Emerson, passou um curta da adolescência de cabelo moicano, calça jeans rasgada e brincos, com as camisas de banda e coturno ou tênis sujo com os vinis dos caras embaixo do braço. Hoje em dia até as crianças usam calça rasgada e cabelo estilo punk. A indústria cultural consegue transformar tudo em produto. Antes éramos taxados de marginais e drogados e as mães de família do recôncavo desciam da calçada pra não passar perto de gente como nós. Nenhuma alusão a Tchítchicov de Gógol, só que até as almas tem seu preço. As almas vivas. Entende meu amigo?
_E as almas sempre tiveram o seu preço e é dos homens desalmados, essas almas sem valor ou, com certo valor de barganha, á depender de que ângulo se olhe.
_Não sei não. Existem coisas que repugno.
_Você é muito cristão. O cristianismo derrota um homem. Lembre-se que foi após uma crise religiosa que Gogol queimou os originais da segunda parte de Almas Mortas antes de vagar como andarilho até se deixar morrer de inanição. Criaturas surpreendentes estes gênios de outrora. Não há mais pessoas sensíveis a esse ponto hoje em dia. A sensibilidade dos gênios de hoje é ofuscada por glamour e cocaína.
_Ô conversa chata - Jana reclamou e fez uma cara de desdém misturada á incapacidade de discutir qualquer assunto fora da esfera acadêmica. Meu amor por aquela menina havia sido tão mágico quanto qualquer utensílio de vitrine de loja de mágica que cobiçava na infância. Quando levava pra casa perdia a graça.
Naquela noite, enquanto saia da pizzaria com Janaína e Emerson sem olhar propositadamente pra mesa de Luana, percebi que a deplorável iluminação do Feira VI fazia com que as nuvens se tornassem avermelhadas e pensei em vikings e cavalos alados nas nuvens e dragões e belas mulheres vestidas com roupas idênticas as das capas das revistas de Conan. Imaginei Lua com aqueles trajes sensuais. O nome da revista em quadrinhos era A espada selvagem de Conan. E aquela menina que queria ser historiadora fazia com que me sentisse um ser bárbaro e bestial. É que ela gostava que eu metesse a pica com violência, esticando o cabelo, dando tapa na cara e na bunda e pedia pra eu cuspir no seu rosto e bebia meu esperma até a última gota, mas dizia que só me dava o cuzinho se eu casasse com ela e ficava cantando as músicas de Marisa Monte com aquela voz antipática depois que trepávamos. Sempre tive uma consideração especial pelas mulheres que engoliram meu sêmen, sei que ainda existe algo de mim nelas. Encontrei-a certa ocasião em Feira alguns anos depois de termos terminado o namoro e ela tava com a bunda tão perfeita com aquela calça jeans-claro apertada que fui forçado a elogiar:
_Nunca te vi tão bonita em minha vida.
_Deve ser porque você nunca soube cuidar de suas mulheres.
_Pra quê esse ódio?
O olhar dela era capaz de esfolar-me vivo. Jamais haveria diálogo ou rememoração.
É melhor voltarmos as nuvens, as nuvens vermelhas...