Monday, January 15, 2007

Capítulo XII.

O Feira VI era um daqueles conjuntos populares de casas de dois ou três cômodos construídas em meados da década de oitenta para abrigar policiais e outros funcionários públicos. Com suas ruas de calçamento e sua estratégica posição entre a UEFS e o batalhão de polícia, esse conjunto era responsável por abrigar a maior parte da população estudantil da universidade e os donos das casas cobravam preços altíssimos em alugueis de cubículos em péssimo estado, sem segurança, com goteiras, mofo, ratos e o diabo a quatro.
Muitas vezes os habitantes construíam moradias no quintal ou batiam laje acima da própria pra alugar pros miseráveis da instituição universitária. A casa era alugada dessa forma: “Aqui nesse quarto cabem dois beliches, nesse aqui três, cada estudante dá cinqüenta e a casa fica por duzentos e cinqüenta”. Esse era o pensamento dos sovinas do Feira VI em relação aos milhares de jovens oriundos de todas as regiões da Bahia e outros estados em busca de um canudo pra serem alguém na vida. Hoje em dia o bairro está adotando as construções verticalizantes, restaurantes, casas noturnas, farmácias, sorveteria, igrejas, armarinhos, pontos de venda de entorpecentes, pastelaria, casas de material de construção, etc. Como os bancos estão na UEFS logo ao lado, o Feira VI só precisaria de funerária e cemitério pra virar uma cidade, uma vez que o batalhão de polícia se confunde com o bairro e representaria a delegacia. Ninguém precisa mesmo de prefeitura ou qualquer espécie de governo fora do próprio espírito.
Eu mesmo só fiz o curso de Letras porque imaginava que podia ganhar dinheiro falando da vida e obra de seres atormentados como eu; tudo mentira. O formato é chato, os colegas de trabalho e os diretores são abomináveis e todos sabem que o ensino na verdade é um engodo desgraçado para as almas que gostariam de estar fudendo, ou na praia, ou cantando ou, simplesmente, olhando para o céu com os sonhos bem no chão.
E, antes do show dos Garotos Podres nós tivemos que fazer o velho ritual de contatar Josué, um brother que já foi jogador profissional de futebol e que hoje disputa o torneio intermunicipal de Feira no time do bairro do barão do pó que muito o estimava em virtude de suas boas atuações em campo. Sempre gostei mais de minha gelada e meu baseadinho. Cocaína nunca foi minha droga predileta, eu ficava nervoso, introspectivo, sem fome, o álcool não fazia efeito, se fudesse não conseguia gozar e sempre a espera angustiante por algo que nunca iria acontecer, sem falar da depressão no outro dia com o corpo moído e o nariz na merda. Mas era noite de rock’n roll e algumas linhas poderiam facilitar a atuação na frente do palco num show de hard-core.
O circo estava montado: Iggy Pop de fundo, várias cervejas na casa de Souza que é um coligado que fazia mestrado em botânica e quando bebia dizia que tinha castelo em Portugal, que foi prum show dos Ramones em Buenos Aires, que já correu a São Silvestre e jogou no Guarani de Campinas e que tinha um pitbull que buscava mulher em Porto Alegre pra ele pelo braço. A parte verdadeira é que quando brigava com a mulher, se transformava numa criatura capaz de beber, cheirar, quebrar o pau e destruir, mas tinha um coração bom e não tinha apego material; grandes requisitos pra aquele lunático se tornar meu amigo.
Lá também estavam Emerson, Alice, uma guria de Física, Flavio e Tom Raiva e quando Josué chegou de moto-taxi com aquela pedra de dez gramas, a comoção foi geral e Alice foi logo esquentando o prato e Souza aumentou o som e começou a pular. Aquele ali gostava da bicha malvada:
_Esquenta o prato! - Souza pulava e seu cabelo loiro trançado subia enquanto seu corpo descia e todos começaram a sorrir e a felicidade existia nesse mundo sob diversas perspectivas. Essa era a conclusão a que cheguei naquele instante.
_Faz duas de cada -bradou Emerson.
_Uma de cada - Flávio sugeriu.
_Bota logo uma grande pra Josué que fez o avião - disse Souza enquanto preparava a narina e fazia o canudo com uma nota de dez reais. Aquela nota de dez reais de plástico foi uma mão na roda pros aspiradores de pó.
_É mesmo - e Tom Raiva mal terminou de falar e pegou a colher, tirou um pedaço, bateu e fez uma linha que não tinha mais tamanho nem grossura com o cartão telefônico, mas Josué deu de uma vez e quando tirou a cara do prato, soltou a respiração e falou:
_Agora sim!
_Faz uma de cada, depois outra rodada - sugeri enquanto abria uma cerveja.
_E deixe um pouquinho pra fazer o mesclado com a massa.
_Não Alice, vá com sua onda de sacizeira pra casa do caralho - sacizeiro é quem gosta de fumar pedra e depois que Raiva escaldou a menina, ele cheirou a dele e rodou o prato.
Aquele processo de bater, alinhar, se aplicar e beber levou cerca de duas horas e foi difícil convencer aqueles cães a largar o osso pra ir pro show. Pegamos um táxi e chegamos mordendo os próprios dentes com os nervos a flor da pele e tencionados. Todo mundo sério.

1 Comments:

Blogger Julio Cesar Corrêa said...

Infelizmente não tenho acompanhado o folhetim desde o início, mas o pouco que li me pareceu interessante. Parabéns!!!
gd ab

9:03 AM  

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