Sunday, October 15, 2006

Capítulo VII.

Nunca gostei de calça e sapato, se pudesse viveria eternamente de sandália e bermuda, mas quando viro o respeitável professor, tenho que usar trajes mais compostos.
É muito fácil lecionar uma disciplina como literatura brasileira. Não há necessidade de preparar aula, uma vez que ninguém lê absolutamente nada e tudo que você falar acerca da vida do autor, das características da obra e da escola literária a qual esta obra pertence se tornará a mais pura verdade.
Eles me pagavam a mixaria de quinze reais por hora e era bom me adiantar. Na última vez antes de viajar pra Chapada, a dona do cursinho pré-vestibular havia dito que se chegasse mais uma vez atrasado não ia poder continuar comigo na empresa e que seria chato descontar os meus minutos de atraso e essas coisas. Lembro que ia mandar ela enfiar o subemprego de merda dela dentro do rabo, mas lembrei do aluguel tão atrasado quanto eu e engoli o sapo. Aquela desgraçada era um exemplar evoluído de sovina, só pensava em números e em quantos assuntos cada professor dava por aula. Quanto mais conteúdo em menor tempo, melhor pro seu bolso. Além de casquinha, a maldita era mal humorada e mais feia que o cão chupando manga, mas casou com um gringo imbecil que a leva á Alemanha nos finais de ano. Esse alemão não deve saber fuder ou não existiria razão pra tanto aborrecimento na sua esposa, só que esses personagens não merecem tanto a nossa atenção.
No ponto de ônibus havia uma senhora com um garoto de cerca de quatro anos, um policial militar, um vendedor de queijo coalho assado na brasa e uma morena literalmente perfeita trajando uma justa blusa de algodão nas cores do arco-íris, saia estilo hippie patricinha e um modelo de óculos de grau meio quadrado, sofisticado e sensual. Olhar pra ela era a melhor coisa a ser feita enquanto esperava a porra do ônibus. Ela me lembra muito uma figura de pedagogia que ficava comigo na universidade que se vestia de forma irreverente com esse tipo de saia, cabelo trançado, tatuagem e piercing, mas na hora em que acendi um baseadinho depois da transa, a criatura começou a bradar, disse que fazia parte de um grupo de jovens da igreja católica e, se eu quisesse realmente ficar com ela, teria que parar de fumar. A bunda dela era tão maravilhosa que até hoje me masturbo pensando, mas eu não poderia trocar minha relação de mais de dez anos com a ganja por uma menina cheia de pudores e valores. Mesmo com aquele corpo escultural, tive que manda-la passear. Imagine ter que aturar a dona do cursinho e outros acontecimentos envolvendo uma humanidade doente sem ter ao menos um baseado pro final de noite. Deus me livre dessa má hora.
O ônibus veio lotado só que, depois do ultimato que me deram, teria que ser esse mesmo. Ia demorar cerca de quarenta minutos de Brotas até Ondina e tinha esquecido completamente da menina que ficou num lúgubre ponto de transporte coletivo ou em qualquer outra fresta desolada em minha mente. O cobrador deu o troco com uma expressão que simbolizava descontentamento e, pra minha sorte, me posicionei em frente á um débil casal que acabou de levantar pra pedir ponto assim que eu cheguei perto. Sentei e comecei o meu velho e habitual cavalgar de pensamentos, arrastando com eles os sentimentos e a menina branquela na frente brinca com o telefone celular, a mãe cochila bem perto e tem uma gorda negra oxigenada na cadeira á esquerda e do lado, um protestante e no corredor, uma miscelânea de cores desconexas e corpos e perfumes e sonhos.

Capítulo VIII
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Depois da aula peguei carona com dois playboys alunos meus que ouviam uma mistura de música pop, hip-hop e guitarras bem pesadas que eles chamavam de new metal. Violência sonora gratuita mesclada com momentos de leveza e vocais melosos; uma desgraça, mas como ainda são jovens pode ser que consigam se salvar. Devo estar sendo muito rigoroso. Os carinhas poderiam estar ouvindo os piores pagodes e arrochas da baianidade nagô e aí sim eu estaria fudido dentro do carro.
Quando o automóvel parou numa sinaleira na Barra, o que tava dirigindo abaixou o volume do som e perguntou com uma cara cretina:
_Dê idéia aí professor, o senhor já esbagaçou aquela Alessandra que fica de sainha cruzando e descruzando as pernas na frente do senhor, não já?
_Bem que eu queria!
_Demorou viu profe! - Replicou o carona.
_Aí eu perco meu emprego.
_Na moral mermo professor, por uma daquela eu perdia até dez empregos.
E não é que o garoto estava com a razão? Ela sempre me olhou com uma sórdida expressão com a caneta na boca, vestia roupas curtíssimas, o que seria denominado como vulgar entre mulheres de classe, mas eu adorava. Comecei a pensar no assunto, só que Lua estava em todos os semáforos e faróis dos carros daquela noite e de muitas outras. Eu não era mais adolescente. Se escolhi aquela mulher pra viver comigo é porque deve existir sinceridade e cumplicidade senão não haverá sentido. E eles continuavam a conversa:
_Ela é gostosa, mas é burra demais - disse o motorista.
_Se fosse inteligente não era humana – replicou o carona.
_Será que toda mulher bonita e gostosa tem que ser burra?-Isso porque ele não conhecia minha mulher que além de bonita e inteligente, tinha plena convicção de que possuía esses atributos e de como eles mexem com o imaginário de nós homens. Tive que interromper o diálogo dos dois:
_Eu tenho um amigo que diz que não existe possibilidade de amizade entre homem e mulher. No caso dele, só se a mulher for feia e amizade entre mulheres é algo absolutamente improvável em sua opinião, já que uma quer ser sempre melhor e mais bela que a outra. Dentro dessa ótica, a mulher não precisa ser inteligente, só necessita ser bonita e gostosa. Ele diz que tem amigos se quiser falar algo interessante ou que depois da foda pode ler um bom livro.
_Gostei desse cara professor.
_Eu também.
Esse cara era Emerson, o maior rato de biblioteca que já vi na vida. Roubava diversos livros nas bibliotecas dessa grande Bahia. Estudava o sistema da biblioteca a ser atacada, descobria a falha e agia como um gato, ou melhor, um rato. Nas grandes livrarias roubava praticamente aos olhos do vendedor afinal, ninguém notaria aquela espécie de duende de um metro e sessenta sempre de coturno e alguma negra camisa de banda de rock. Dizia que só pegava as obras que possuíam vários exemplares idênticos e eram livros de compreensão inatingível para o homem comum, não devendo sequer estar naquela estante. Acho que conheço dezenas desses caras que acreditam viver acima de tudo que é humano, mas Emerson pelo menos lia os livros que roubava. Sempre que tentei me apossar de alguma coisa, desisti no caminho. A vergonha ao antever meu fracasso era denunciada por meu semblante, eu jamais conseguiria vencer aquele estado de nervos que a idéia de roubar despejava em meu corpo. Sempre sonhei com a vitória amoral do bandido no cinema e talvez essa íntima torcida por um final que nunca ocorreria na película pode ter ajudado na construção quase sem fim do meu mundo infinito em devaneio em zigue-e-zague.
E os garotos pararam de enaltecer as curvas da colega de saia e começaram a perguntar em quem eu iria votar pra presidente e pra deputado e governador e esse tipo de coisa. Um dos rapazes desceu na Piedade, eu passei pro banco do carona e não falei mais nada até o “valeu meu brother” na porta do velho edifício na D. João VI.
Ela ainda não chegou, a luz do apartamento ta apagada. Vou no trailer da rua de baixo bater uma gelada. E se ela nunca mais voltasse? Às vezes não, muitas vezes, penso e vivo pequenas tragédias cotidianas como um ensaio para kamikaze da dor. Todas as linhas ofegantes das abstrações teimam em desaguar no fim. Minha cerveja não tem água do rio Letes e esqueço a travessia de Lua.
Carlão e Zé de Juca jogam sinuca apostado cinqüenta centavos fora ficha e, é só eu pisar no bar que o velho Régis, dono do trailer, coloca uma coletânea de Bezerra da Silva pra eu me ambientar. Acho que sou o único com menos de cinqüenta que freqüenta esse espaço quase perdido em meio a mais de três milhões de rostos soteropolitanos. Lugarzinho mixuruca e matéria prima das frustrações e anseios do meu dia. Neste instante imortalizo-o nestas páginas oníricas e bebo a graciosidade da parede descascada em sagrados e sublimes tons de vermelho e branco sujo.

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