Friday, September 29, 2006

Tive alguns problemas com a net, mas volto pra barbearia literária com a barba grande e grisalha e repleta de sonhos.
CapítuloV.

No ônibus era tudo obscuramente estranho. Sempre fui meio anti-social e não tinha grana pra ter carro e não sabia dirigir. Uma certa vez, uma ex-namorada que era louca e psicoterapeuta, começou a me ensinar.
Isabela, uma loira gostosíssima de enormes olhos azuis, era uma companhia bem agradável, pena que tinha um gênio incontrolável e via o amor de forma estranha, pelo menos pra mim. Os psicólogos ás vezes esquecem de tratar a própria mente e ficam meio pirados, mas lembro que meu coração quase saiu pela garganta juntamente com o pulmão no momento em que roubei o primeiro beijo de Isabela. Ela era minha amiga e tava na dúvida se confundia as coisas. Meus batimentos viajavam a velocidade da luz, níveis de adrenalina em ebulição e peguei no colar em seu pescoço, elogiei a jóia, segurei sua nuca e pronto. Quando senti que ela beijava, o uníssono das línguas começou a me acalmar e nunca esqueceria o sabor da mistura de amilases salivares e o brilho dos seus cabelos cor de sol ao meio dia.
No instante em que o ônibus entra na orla marítima de salvador desde o Porto de Barra, começo a me perder em devaneios e só volto à realidade quando o carro entra na Pituba e o mar fica escondido das minhas vistas hipnotizadas pelo balanço das ondas e dos quadris soteropolitanos na calçada.
Tem uma garota nos seus vinte anos que conheci na biblioteca dos Barris, durante a exibição de filmes de Orson Weeles. No dia que passou Othello, mais precisamente, foi quando nos conhecemos. Antes de começar, enquanto observávamos alguns cartazes raríssimos dos filmes do cineasta americano, ela puxou conversa:
_Você não é Rafael de Oliveira?
_Você foi minha aluna? Eu não tô lembrado, me desculpe – Ela devia ter entre dezenove e vinte e um. Pele branca, cabelos pretos cacheados e se vestia com toda a contemporaneidade da maioria das garotas de hoje. Salto plataforma, calça com o coes baixo, tão baixo que dava vontade de viver só em olhar e blusa deixando a barriga de fora com o tradicional piercing no umbigo. Pensei em Lua e tentei escapar de qualquer possibilidade, mas era impossível.
_Gosto de seus poemas. Eu sou a Cinderela Adormecida que deixa comentários no seu blog. Eu faço jornalismo e gosto muito do que escreve. Queria escrever como você.
Poderia ter ficado calado, mas não pude evitar a tirada:
_Eu te ensino se quiser
_Meu nome é Fernanda.
_Nice to meet you honey!
_Nice to meet you too! –sacanagem aquele sorriso. Será que não era uma armadilha de minha mulher? Da internet pra vida real. Admirável Mundo Novo, Matrix, Blade Runner. Agora vejo que o avanço tecnológico não é de todo ruim.
_Meu telefone é XX98-5642, não vai anotar?
_Já decorei. Nunca mais na vida esqueço. Não perca esse celular, não deixem roubar...
_Eu moro na Pituba, Manuel Dias 1314, Ed. René Magritte, 602 o AP.
_Vamos entrar?
_Vamos - Gosto dos quadros de Magritte, só que ele nunca pintou cena tão surreal quanto essa.
Sabia que a interpretação de Welles no papel do Mouro de Veneza é magistral, mas nos beijamos até a metade do filme até que não agüentamos e fomos pro apartamento dela. Os pais estavam trabalhando e a irmã de quinze na Disney. Um sonho de família burguesa e segundo um velho amigo dos tempos de escola: “A melhor coisa da burguesia são as filhas”. E ainda pensava em Luana, mulher que respira em todos os meus passos. Mas não era culpa minha, o pecado cibernético não consta nos dez mandamentos. Diretamente da rede mundial de computadores para os braços de Rafinha. Os detalhes dessa foda eu talvez conte mais tarde. Lembrei dela porque o ônibus passava pela Pituba, mas já estamos em Patamares. A orla soteropolitana é singularmente deslumbrante e a periferia só é bela á noite quando vista de longe e parece um presépio de natal como no instante em que chegamos na entrada da cidade e vemos as luzes acesas das casas em Periperí, Paripe, Plataforma, Pirajá, etc e tal. Pituaçu, Pituba, Piatã e Patamares começam com P, mas é bem diferente.
O ônibus chegou em Jaguaribe e pedi ponto quando vi que tinha passado o referido anuncio do Muralha da China. Tive que andar uns seiscentos metros pela calçada pra achar. Na barraca de praia, Tom Raiva já contava suas histórias hilariantes pra três garotas e um playboy com cara de viado que ria a ponto de convulsionar-se. Como uma pessoa consegue acordar cedo e ás dez da manhã de segunda-feira, encontrar uma barraca de praia aberta e que toque rock e se embebedar e envolver-se com todos á sua volta dessa forma?
_Você veio? Eu não acredito. Isso foi saudades ou medo de que eu sumisse com esse original New Values de Iggy Pop?
_Exatamente!
_ Vocês conhecem Rafael de Oliveira? Ele é o maior escritor dessa cidade e eu, é claro, o maior poeta baiano desde Gregório de Mattos. Vocês não conhecem porque não gostam de ler, mas isso pouco importa, detesto intelectuais. Rafa, essa é, como é mesmo seu nome?
_Andréa, esqueceu foi?
_Não meu bem, foi só pra ele ouvir sua voz, vá lá se apresentar de perto. Ele pegava na mão da moça e conduzia-a com aquele surpreendente dom da persuasão. O miserável podia ser o que quisesse; padre, pastor, advogado, político. Na academia, gostava de humilhar os ditos detentores do saber com sua língua desgraçada e em meio à plebe, falava como um deles. Foi me apresentando uma á uma, depois pediu licença e me chamou pro lado da barraca:
_Vou deixar você ficar com a mais gatinha, eu sei que cê é enjoado.
_Não, já pilantrei minha mulher antes de viajarmos e o telefone da Cinderela Adormecida não sai de minha mente. Vou tomar umas duas brejas e ficar na minha.
_Com todo o respeito meu velho, se eu tivesse uma mulher que nem a sua eu também não traia não.
_Ta certo.
Peguei duas cervejas e voltamos pra mesa ao som do BBC Sessions do Led Zeppelin. Quando Tom chegou perto, uma das meninas, a que eu achava a mais bonita disse a nosso amigo:
_Gostei de sua tatuagem.
_Só da tatuagem?- Ele perguntou.
_Não, gostei de você todo – que cara de piriguete que tinha aquela guria!
Ela tava na espreguiçadeira e tom se ajoelhou na areia pra beijar a criatura. O viadinho e as outras meninas fizeram a maior algazarra e uma delas sorriu-me com expressão libidinosa. Raiva pegou a guria nos braços e levou pra água. O mar estava calmo e a praia praticamente vazia e dava pra ver nitidamente o cara chupando os peitinhos da figurinha e foi pra trás dela e começou a meter com água na cintura a uma distancia razoavelmente irrisória da beira do mar. Sabia que se fizesse o mesmo com a que me olhava, iria dar o maior arrependimento depois que gozasse e não dá pra fuder de camisinha na água, além de não ter nenhuma. O cara é mesmo maluco. Tomou algumas, achou bonitinha e já foi. Diz que só pega aids quem dá o cu, aquele lunático. Fala que se morrer, pelo menos morreu fudendo, “pior é quem morre e nem fode”.
Não agüentei e liguei pra Fernanda. Ela disse que tava estudando pra uma prova na faculdade e que só podia á noite, horário expressamente proibido dia de hoje e marquei pro dia seguinte. Apaguei o numero da lista de números discados sem deixar de sentir um peso nos ombros e fui em busca da que me olhava. Já era o instinto, não era mais eu. Convidei a figura pra um banho de mar:
_Ta afim de dar uma caída comigo?
_Brigado, mas dei escova em meu cabelo ontem.
Pensei em dizer “eu pago uma chapinha nova” mas fiquei calado. Tem dias que é mesmo uma merda. Botei queixo que não tava afim, passei pela culpa e pela timidez pra enfim ouvir um fora. Nesse ínterim, Raiva já voltava com a rapariga que friccionava os cabelos e pulava pendendo a cabeça ora para a direita, ora pra esquerda querendo tirar a água do ouvido.
_Meu brother, vou nessa. O do Led e John Coltrane podem ficar contigo, mas Clash e Iggy Pop são originais.
_Eu também tô indo, vamos beber a saideira.
_Nenhuma.
Eu sempre pensei a respeito de escrever um dia sobre a magnífica massagem cerebral e leveza de espírito que o primeiro gole de cerveja desencadeia numa manhã sem sentido. È uma sensação digna dos Deuses. Gosto de vinho, mas uma cerveja é incrivelmente o meu fraco. Começo a lembrar de um poema de Tom raiva em que ele diz: “... E se fosse o céu /Da cor dessa cerveja/Eu, com certeza/Teria asas-nadadeiras/E um pedaço de papel”. Não bebo todos os dias, mas quando começo é difícil de parar. Dizem que é alcoolismo, eu acho que não. Sinto uma vontade maior de beber quando estou deprimido e isso só acontece em momentos de ócio. Mente parada é mesmo oficina do diabo. Acho que só escrevo pra parar de pensar. Beber pra comemorar ou esquentar uma sacanagem é muito bom também.
Tom pagou a conta, gravou o telefone da menina no celular, deu o velho beijo de despedida e subimos a escada pra alcançarmos o calçadão afim de atravessarmos a pista pra pegar o ônibus do outro lado.
_E aí cara pálida, conheceu esse povo hoje mesmo?
_Não. Ontem passei o dia bebendo nessa barraca e conheci essas meninas, mas tava muito louco, aí marquei pra hoje.
_E agora?
_Vamo na casa de Cláudio aqui na Aldeia de Jagueribe, é um coligado que tem uma coleção respeitabilíssima de Jazz, uma piscina, cervejas e pés de skunk na estufa.
_Só faltou dizer que tinha mulher nua e bonita servindo a cerveja!
_Seu mau é esse.



Capítulo VI

O condomínio de Cláudio era repleto de carros de luxo, árvores belíssimas e casas que mais se assemelhavam a castelos pós-modernos e essas habitações que só vemos em capa de revista de decoração.
Na entrada o porteiro perguntou com quem gostaríamos de falar, pediu nossos nomes, usou o interfone e praticamente ordenou que deixássemos a carteira de identidade com ele até que saíssemos do condomínio.
As mulheres que passavam nos carros importados lá dentro faziam com que questionasse os meus valores e começasse a imaginar uma vida de lorde á beira-mar, mas rapidamente lembrei da primeira vez que tomei um AC no Arraial da Ajuda e tive a nítida percepção da vida de ator que levamos a cada dia, foi nesse instante que consegui perceber como os gestos, andares, vozes e sorrisos de todos á volta eram calculados previa e maquinalmente pra que conseguíssemos mostrar a idéia inexata que fazemos de nós mesmos; um blefe, mera atuação de pigmeus recauchutados só conseguindo sinceridade na loucura.
_Meu velho, Cláudio não é esse cara que tem prazer em ver você comendo a mulher dele?
_Fale baixo que já ta chegando na casa do cara, faltam dois quarteirões.
_O que é que esse cara faz?
_É um cara influente no meio artístico de Salvador, artista plástico, músico, escritor de merda, diga-se de passagem, e um belo cargo junto ao governo do Estado.
_Por que você não pede a ele pra publicar suas poesias?
_O cara tem ambições políticas e diz que meus poemas seriam a sua ruína.
_Mais um filho da puta! Como você consegue se relacionar com esse povo doente? O velho verme de sempre, sempre sugando aquilo que te interessa em cada um de nós.
_Mais evidente em mim que no resto da humanidade?
_A casa ainda ta longe? – Seguranças armados e um hotweiller passaram nos encarando.
_Aquela com a palmeira na frente.
Uma bela casa, mas talvez a menos luxuosa entre as demais. Raiva usou o interfone e o portão foi aberto por um cara nos seus quarenta e cinco anos, calvo e grisalho com rabo de cavalo, imensa barbicha igualmente grisalha, trajando paletó e gravata com os “olhos em brasa, fumaçando, fumaçando, fumaça”.
_Grande figura! Que maus ventos os trazem?
_Os velhos e amaldiçoados ventos de sempre. Esse é Rafael.
_O escritor amigo de infância?
_Ele mesmo.
_Entrem. Eu tava indo trabalhar mais posso chegar atrasado, afinal é Segunda-feira.
Dentro da casa era algo realmente incrível com vários quadros abstratos e fotos de músicos de jazz e esculturas e cascatas com luz néon e um cachorro poodle pra estragar o ambiente com aquele latido insuportável.
Sentamos num sofá que parecia desenhado por Nyemaier e ele foi na cozinha e voltou com duas cervejas.
_Por onde anda seu amigo botânico? Quero conversar com ele sobre plantas.
_Algum problema com as orquídeas?
_Não, era que eu queria que ele experimentasse a última variedade que acabei de colher, vamos pro escritório.
Aquele cara certamente sabia gastar dinheiro. O que ele chamava de escritório era um atelier com seus quadros mais recentes de um futurismo meio ultrapassado, mas de forte impacto em cores vivas, uma estufa com mais de dez pés de skunk, uma respeitabilíssima biblioteca com obras de literatura, história da música e da arte, uma discoteca repleta de obras de jazz, blues e soul music em vinis e uma boa mesa de som perto duma porta de vidro que dava num pequeno estúdio com bateria, teclado, guitarra, baixo, percussão e instrumentos de sopro. Se morasse ali, jamais sairia daquele escritório que era o sonho e parque de diversões de milhares de artistas. É uma pena que muitas pessoas que possuem um grande talento não possam desfrutar de algo assim.
O cara abriu a gaveta do criado-mudo e tirou umas berlotas que tinham cheiro de tangerina com manga verde e tive que perguntar maravilhado:
_Que porra é essa seu Cláudio?
Ele deu uma risada que demonstrava ares de superioridade e explicou:
_Uma variedade de bagulho híbrido criado na Holanda, as sementes você compra na internet com cartão de crédito e chega pelo correio. Só não pode pensar em vender que Deus castiga. Essa maconha, cannabis sativa, que rola aqui na América do Sul, tem um princípio ativo que gira em torno de 1.5 a 2 % de THC, enquanto as variedades modificadas geneticamente alcançam índices que podem alçar 19%.
_Overdose de maconha então?
_Quase isso. Vou enrolar um pra vocês que eu acabei de fumar agora.
Enquanto ele tratava a massa, Raiva colocou um vinil de jazz que trazia uma versão de Autumn Leaves até então desconhecida pra mim, já que só sacava a versão de Miles Davis com Cannonball Adderley no sax, Art Blakey na bateria, Hank Jones ao piano e Sam Jones no baixo. Uma obra prima do gênero. Essa outra versão era de autoria de Stan Getz, mas Cláudio não deixou que chegasse ao fim e colocou Duke Ellington afirmando que e a faixa East St. Louis Toodle-oo era mais apropriada pra ocasião. Nunca fui muito fã do jazz na linha de montagem, só que tenho que me curvar diante da languidez e sublime beleza de músicas como Day-ream de autoria de Ellington, Latouche e Strayhorne. Skunk em português quer dizer gambá e quando Cláudio acendeu o beck, o cheiro que exalava era uma mistura de maconha, alfazema e laranja bastante forte. Ele passou pra mim e a tosse foi inevitável depois da primeira tragada.
_Cohf, cohf, cohf, uhrr..Que caralho é esse Raiva?
_O gosto não é maravilhoso?
_Muito bom.
_Melhor que o gosto é a lombra.
_Tô até cabreiro.
Passei o baseado pra Tom que fumou tossiu, fumou tossiu e passou pra Cláudio que recusou e voltou pra mim e eu fumei e tossi e fumei e tossi e, mais rápido que o normal, estava embarcando no meu devaneio monomaníaco e pensava em Lua e na aula que tinha que dar e na Cinderela Adormecida e em Deus e o Diabo e Glauber Rocha e Bandeira em Arte de Amar e meu avô quando era vivo e o ambiente estava escuro, o sopro mais alto, a música bem perto e voltei a realidade. Não tinha vontade de fazer mais nada a não ser me afundar em córregos duma lama de mim mesmo e aproveitar o instante e navegar, mas por alguns momentos, quando pensava na vida lá fora, queria voltar a sobriedade e ao passado infantil com a família reunida na chácara em Lauro de Freitas como cena em platonismo atemporal, uma verdadeira piração que apertava meu juízo e ás vezes dava medo. A voz de Cláudio chegava a meus ouvidos como um eco longínquo e a notícia de que teríamos que sair me deixou meio triste, pois não tive tempo de vasculhar calmamente a discoteca e a biblioteca do cara.
­_Vamos nessa que ainda tenho que passar no fórum. Tom, diga onde vocês vão ficar que eu dou uma carona.
_Qualquer lugar em Brotas ta bom pra gente. Não posso esquecer de pegar os documentos na portaria com seu gentilíssimo porteiro.
O carro do cara era puro odor de bagulho e ouvimos Thelonious Monk de Jaguaribe a Cruz da Redenção. Na Dom João VI nos despedimos. Raiva pegou um ônibus pra casa da avó na Daniel Lisboa e eu andei cerca de dois quilômetros até o meu apartamento onde precisava tomar um banho frio ou qualquer outra coisa que me deixasse mais ligado. Dentro de duas horas estaria no cursinho falando de Murilo Mendes e Vinícius de Morais mesmo sabendo que em dez vidas a maior parte dos imbecis jamais leria uma estrofe de poesia. Era hora de me transformar no vendedor de literatura.