Thursday, December 06, 2007

SEGUNDA PARTE.

Capítulo I.

_E aí ilustre criatura! Esqueceu que o senhor tem que se arrumar pra dar aula enquanto eu aproveito a greve na universidade?
_Já tô indo.
_Ta escrevendo o quê?
_De quando conheci a mulher que me atormenta, sobre toda essa maluquice que nos cerca, e Tom Raiva e seu amor de Dirceu por sua Marília pós-moderna e esse tipo de coisa tão comum a todos nós e ninguém bota no papel.
_Só você, o grande artista que abdica das superficialidades de uma vida vazia pra se entregar a sua obra.
_Também te amo.
_Me deixe ler...
_Se sinta á vontade. Vai querer ouvir o quê enquanto examina a gênese do meu romance?
_Aquelas baladas de John Lennon. Gosto mais dele solo do que dos próprios Beatles.
_Ás vezes penso a mesma coisa, mas sinto falta do baixo de Paul como nos discos da segunda fase da banda.
_Adoro conversar contigo sobre música. Já te disse que sou eternamente grata a você por toda a riqueza musical de nossa vida?
_Por que a senhora ta assim tão meiga?
_Deve ser saudades. Quando fico longe de você sinto um amor que até você iria se assustar. Quero que se sinta amado pra não olhar pras burguesinhas do cursinho.
_Eu posso até olhar, mas aí eu comparo e esqueço.
_Sempre espertinho. Me beija!
_Vem você – E ela me encarou com uma nabokovica expressão de ninfeta, de moleca traquina deitada no sofá e eu acabei indo para o beijo. Sempre cedia.
Muitas vezes me sentia uma mulherzinha perto dela. Tinha certeza do seu domínio sobre mim, contava os minutos pra ela voltar como uma espécie de Penélope ou francesinha enamorada da Primeira Grande Guerra que esperava a volta do amado que sangrava até a morte no front. Fico pensando o que essa criatura viu em mim. Ela poderia ter qualquer homem que quisesse e escolheu Rafael de Oliveira. Será que ela realmente acredita no que escrevo? Sempre que penso essas coisas fico imaginando o dia no qual Lua me dará um pé no rabo e me lembrarei de agora sem saber se terei coragem suficiente pra me reerguer depois do alcoolismo praticamente certo após o abandono. Ela ta tão carinhosa que penso em não trabalhar, mas lembro que não ganho nada escrevendo e que a dona do cursinho ta de marcação a quadra inteira comigo nesse baba.
Beijei-a como deveria ser a nítida separação entre a doçura daqueles lábios e a amargura de ter que trabalhar. Coloquei John Lennon pra tocar, mudei a camisa sem tomar banho e fechei o baseadinho que facilitaria o meu convívio social me afastando das pessoas em direção ás profundezas de mim.
Mas hoje é um dia bom. Vou passar ás duas aulas declamando versos e comentando Augusto dos Anjos no cursinho. Poesia sem igual pra seres praticamente iguais. Pequenos imbecis imberbes que acreditam em lorotas mortas, em idéias mais falidas que seus próprios instintos. Meus alunos sonham com todo o glamour de dirigir o carro da propaganda com uma loira parecida com a do comercial e que o caminho dessa felicidade começa ali no cursinho que os levará a promissora carreira e a toda sorte de luxo e tecnológica quinquilharia que nos transforma em escravos daquilo que criamos: títeres de nossas invenções.
E as garotas querem mais que aquele cara que dirige o carro e sorri pra loira do mesmo comercial. Por isso elas procuram, até mesmo nas meninas e vem e vão como verdadeiros anjos do dia do Juízo Final, asfixiando as almas dos homens numa maquiavélica vingança contra toda a sorte de infortúnios e privações sofridas por suas ancestrais na masculina história desse planeta. E tem também os veados separados em duas categorias: a dos que dão o rabo e falam como meninas e a dos que dão a porra do rabo e falam como meninos. Os que se vestem como meninas não freqüentavam o cursinho, ainda era Salvador.
Mais eram praticamente iguais. As meninas se dividiam em patricinhas que se vestiam idênticas e hippies-chics de playground que se vestiam também iguais em seu estilo. As calças apertadas e saias e shortinhos justíssimos das patys era coisa bonita de se ver, enquanto a transparência e a delicadeza das saias longas das maluquinhas eram melhores de tocar.
É foda, quando começa a bater onda fico devaneando demais. Tenho que colocar a calça, calçar sapatos e lembrar do aquecimento global e da emissão dos gases poluentes enquanto infinitos carros consomem a velha D. João VI. Jogando a bagana no vaso sanitário, imagino a noticia de ontem no telejornal enquanto lanchava na padaria. Eles diziam que uma proposta para reduzir o aquecimento global seria colocar espelhos em órbita da terra para refletir os raios que sempre nos deram a vida e a morte. Será que o sol precisa de alguma vaidade enquanto nos governa? Com todos esses espelhos ainda veríamos a lua? O grande processo civilizatório não pode parar, até que tudo seja cinza; céus, mares, árvores e todos os nossos corações. Eu realmente gostaria de saber se a porra do poder é uma droga tão viciante assim. Não, não quero saber nada disso. Deixe-me viver os meus dias como uma espécie de discípulo de Alberto Caeiro que anda de automóvel pra se distrair da ficção.


Capítulo II.

Ontem cheguei atrasado e já tô quase atrasado hoje. O busu parece que não anda, uma mulher estende o braço pra perguntar se passa na Vasco da Gama, um senhor de idade desce lentamente e parece que todos os sinais se fechavam quando o ônibus se aproxima. Acho que hoje peço demissão e ela vai aceitar. A desgraçada pode achar alguém que venda literatura mais barato, mas os alunos me adoram. Nunca tive grandes problemas com alunos ao longo de minha carreira como professor. Talvez todas as horas dedicadas á analise da alma do homo sapiens durante minha vida tenham ajudado a enxergar previsibilidade nas ações consideradas mais inusitadas. Eu vejo a vida como um arquétipo, os comportamentos como caricaturas; tudo cristalizado, solidificado em algo individualmente universal qual toda gama de desejos que nos cerca. Queria ser menos humano. Desprovido de ciúmes, saudades, empáfia, medo, certeza, dúvida e angustias. De que adianta me questionar sobre o ciúme que senti ao ver Luana sair vestida de forma provocante se a porra do sentimento egoísta já corroeu minhas entranhas? Pelo menos posso esconder a cobiça e fingir que leio um livro. Será que o fato de sermos racionais consegue fazer com que soterremos todas as sensações mais primarias de forma satisfatória? Claro que não seu estúpido, senão os bares, igrejas e sanatórios não estariam sempre apinhados de gente assim.
Pedi ponto e pra minha sorte, o professor de química ainda tava na sala. Passei na barraquinha da frente pra comprar pastilhas desbarrunfadoras e, quando entrei, além da megera não estar no curso, o professor de química que era novato e queria mostrar serviço, perguntou se podia usar quinze minutos de minha aula e, é claro, consenti.
Pela primeira vez podia sentar, beber água, conversar com a secretária e pensar se declamaria Versos Íntimos ou Solilóquio de um Visionário pra ambientar aquelas mentes com a poética de dos Anjos. Por mais que gostasse dessa parte do meu trabalho, detestava ter que trabalhar. Cumprir horário sempre foi um sacrilégio pra mim, mesmo sabendo que milhares de trabalhadores saem de casa de madrugada e retornam no meio da noite pra comer, procriar e desabar. Já perdi alguns empregos devido a esse lance de horário. Entre ensinar Língua Inglesa, Gramática da Língua Portuguesa ou Literatura Brasileira, é melhor ficar com a última opção apesar da merreca que me pagam. Devia fazer um mestrado pra ensinar nas faculdades, mas quando penso em ter que estudar novamente algo preestabelecido e enquadrar minha escrita dentro dum padrão científico começo a desistir rapidamente, sou meio preguiçoso e presunçoso. Prefiro escrever pra que escrevam sobre mim ao invés de ter que me esforçar pra citar alguém que legitime o que escrevo. Acho que consigo pensar sem muletas.
Será que Lua ta lendo meus escritos? Ela ainda ta ouvindo Lennon? Será que ta pensando em mim? Quanto tempo mais vou poder devanear enquanto não começo a dar aula?
Meu tempo acabou. O professor saiu da sala se desculpando pelo horário e os alunos saíram pra beber água, fumar um cigarro e esticar as pernas. No fundo eles também não queriam estar ali. Ou será que queriam? Já se questionaram a respeito? É bom deixar quieto.

Capítulo III.


Praticamente na porta do cursinho, só que do outro lado da rua, encontrei Flávio, o grande brother de Tom Raiva e meu amigo também. Esse personagem tem uma importância brutal na vida de Tom. Seu Flávio, uma criatura que fazia bacharelado em biologia, branco, loiro, forte, de olhos verdes, fanático por Bob Marley, Jiu-Jitsu e Basketball, conhecedor e cultivador de diversas espécies de cannabis para uso pessoal, megalomaníaco ao extremo e profundamente apegado a estética das mulheres malhadas com o rabo imenso, deu uma volta certa vez com o velho Raiva. Nessa noite eles saíram com duas belas mulheres de Brasília que visitavam Salvador e, depois da bebedeira, quando todos estavam embriagados no mesmo quarto de Motel, uma das garotas, ao comparar o magérrimo corpo de Tom com o físico hipertrofiado de Flávio, deixou no ar a seguinte expressão: diferença básica!
Foi a partir desse dia que o cara se sentiu feio, pequeno, ínfimo e começou a malhar, nadar, tomar suplementos e anabolizantes, treinar Jiu-Jitsu e abdicar dos efeitos anestésicos do álcool e da cocaína em busca de uma vida mais saudável, mas continuava fumando maconha a toda hora. Aí fudeu tudo! A cada dia ele vinha com aquela conversinha de que era o retorno do homem completo; versado na arte, no amor, na ciência e na guerra. Seus amigos músicos, pintores e poetas diziam que ele tinha ficado bufado, que tinha aderido ao sistema e essas ondas. Mas, mesmo assim, os escritos dele eram cada vez melhores e ele dizia o seguinte: “Meu velho, as garotas são como poesia, possuem conteúdo e forma. Com a melhoria da minha forma física comecei a buscar poemas com maior perfeição estética, linearidade nas curvas, ritmos frenéticos e silhuetas melindrosas. Melhoraram as musas, ergueram-se os poemas.”
Quando encontrei Flávio dava pra notar que o cara tava alucinado.
_E aí seu Flávio, que cara é essa?
_Tomei um doce na casa de meu primo e tô aqui derretendo – A expressão do cara era um misto de alienante felicidade, dúvida e susto.
_Vai fazer o quê agora?
_Vou pra república.
_Que república?
_República do reggae – O cara não perdia nenhum show de reggae em Salvador.
_Ta afim de ir Rafa? Ainda tem metade de um AC aqui.
_Não vou não, Lua ta em casa me esperando.
_Largue essa vida e essa fobia do ser humano. Você ta virando um sociopata.
_Pare com isso.
_Valeu man, vou pegar esse busu.
_Valeu – nos cumprimentamos com esse cumprimento chocando as mãos fechadas uma contra a outra, ele pediu ponto, subiu no ônibus e eu notei que ainda tava viajando e pensei nas coisas que ele me disse. Será que tô virando um sociopata mesmo? Talvez não seja hora de voltar a vida normal? Eu já tive vida normal? O que é normal ou anormal?
Agora tenho que dar aula no curso de Inglês na Graça. O dono do curso é um americano gente boa que não pega no meu pé e ainda me paga o dobro do que a dona do pré-vestibular pagava, só que eu achava um saco ter que ensinar inglês, mas lembrava dos intelectuais condenados a trabalhos forçados após a revolução socialista chinesa e repetia pra mim mesmo que essas duas horas passariam como água pela garganta.
Ajudem fieis leitores, divulguem meus escritos, vendam, peçam o número da minha conta para doações em dinheiro, mas façam qualquer coisa pra que eu possa viver de literatura. Meu Deus! Estou pedindo esmola em meu próprio romance! Bukowski teve que trabalhar treze anos nos correios para que enfim, vocês o encontrassem, Fernando Pessoa a vida inteira como mero funcionário de escritório, Genet precisou do aval de Sartre prestes a ser condenado. Será que vai ser necessário estourar os miolos pra que meus escritos tenham algum valor de mercado? Será que tenho que falar sobre legiões de seres extraterrenos e códigos secretos da NASA?
Vale dos Rios/Stiep R-3. Esse é meu Ônibus. Ainda tenho cerca de vinte minutos em liberdade antes do good evening na entrada da sala de aula.

Capítulo IV.

Em mais uma odisséia imaginária particular num ônibus qualquer de Salvador, metamorfoseado no super vendedor de língua inglesa, vestido de camiseta gola pólo azul-claro, calça jeans-escuro, e um tênis qualquer de alguma grife certamente americana, com minha pasta de couro preto contendo módulos, cds, livros e provas, lia o caderno de anotações do meu bom e velho amigo Tom Raiva. Uma espécie de diário escrito à mão, melhor descrevendo, rabiscado à mão. Peguei o caderno e disse ao figura que ia digitar o que conseguisse entender. Aí vão algumas reflexões do cara enquanto a maldita hora do Good Evening não se aproxima:

13 de Junho – Essa data tem um significado especial para mim além de ser dia de Santo Antonio, padroeiro de Alagoinhas. Eu estava lá na festa quando tinha quinze anos. Música, quermesse, parque de diversões, comida junina e, nas proximidades da concentração do time da Catuense, Gracinha, uma de minhas primeiras namoradas, chupou minha pica pela primeira vez. Eu gostei demais daquilo. Gostei tanto que acabei enchendo a boca da guria de esperma e ela bebeu, fez uma cara de tristeza, levantou e depois vomitou uma mistura de sêmen, coquetel de frutas e maçã do amor. Observei alguma poesia naquele mosaico de cores complementares.

23 e 24 de Junho – Véspera e dia de São João. Essa sempre foi a melhor festa pra mim. Desde quando era um guri de playground e ia passar a data em Alagoinhas na casa de Minha avó materna. Os fogos, as comida e os trajes típicos, a melancolia do forró e do baião, os licores de sabores variados sem esquecer do jenipapo, dançar colado, beijar colado. Ah...! Se fosse possível morrer colado. Que saudades do meu velho forró pé de serra sem instrumentos eletrificados e vadias com roupas de strippers. Que saudades de meu primeiro grande amor consumido por devaneios babilônicos. Que falta sinto do São João em Serra do Aporá meu amor, dos meus ciúmes juvenis e de toda a doçura que havia em teu olhar. Não o que você se tornou após esses dez anos, mas aquela menina de dezenove que me fez decolar para um mundo de incertezas sempre será amada por mim. Será que ainda seria a mais bela do universo? Meu Deus porque não esquecemos. Cristo! Abra algum portal pra essa dimensão aparentemente perdida pelo tempo, eu preciso voltar e sentir, com todos os meus órgãos do sentido, a fatalidade daquela noite lá em casa em 96 quando você me acordou vestida com minha blusa e somente com ela. Ainda gosto do São João. Pelo menos posso beber de graça, fumar bagulho na rua em meio a fumaça das fogueiras e, quem sabe, algum licor de cajá dum próximo São João em Cachoeira, me faça esquecer os memoráveis Sãos Joãos de outrora.

4 de Julho – Lembro da independência do Tio Sam e da minha fase Marxista e o movimento estudantil e as discussões rumo a lugares comuns e as bocetinhas. Sempre havia alguma por trás de cada passeata no sol insuportável.

6 de Julho – Meu aniversário. Tem tempo que parei de comemorar essa data. Nunca entendi porque as pessoas chegam a ponto de congratular uma outra por caminhar mais perto da sepultura. Desde o fim da infância e dos presentes, essa data passou a soar falsa e superficial. Geralmente nada de interessante me acontecia nesse dia e comecei a esconder a data e a me esconder nessa hora.

É bem possível que ainda divulgue algum pensamento do velho Raiva nesses escritos, mas enquanto esse momento não chega, percebo que faltam dois pontos para o meu. Não há mais tempo, não tinha como escapar. Era chegada a deplorável hora do Good Evening.